Trombectomia e o SUS: um caso de resiliência

O benefício da realização de trombectomia mecânica para pacientes em contexto de acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi) já foi comprovado anteriormente em diversos estudos (REVASCAT, EXTEND-IA, MR CLEAN, ESCAPE, SWIFT PRIME). No entanto, entrando no mérito político-social, tais ensaios clínicos foram realizados em países desenvolvidos. Dessa forma, o uso de trombectomia mecânica em larga escala e em contexto de saúde pública gratuita foi questionado pelo próprio Ministério da Saúde do Brasil, dado ao duvidoso custo-benefício dessa abordagem, tida como complexa e cara. Não obstante, o mesmo Ministério da Saúde financiou o estudo RESILIENT (Thrombectomy for Stroke in the Public Health Care System of Brazil) a fim de se determinar a efetividade dessa modalidade terapêutica no cenário do Sitema Único de Saúde (SUS).

Os pacientes seriam randomizados para serem alocados em dois grupos:

  • Grupo controle: receberiam o tratamento padrão (incluindo o uso de trombolítico – alteplase – intravenosa em caso de janela dos sintomas menor que 4.5 horas)
  • Grupo intervenção: Realização de trombectomia intra-arterial associada ao tratamento convencional (incluindo uso prévio de alteplase, quando a janela de tempo fosse permissiva)

No total, 12 centros considerados como de referência neurológica foram selecionados a fim de recrutarem pacientes para o estudo. Nos centros sem experiência prévia na realização de trombectomia, foi oferecido um treinamento, de modo que os médicos intervencionistas deveriam ter desempenhado pelo menos 5 procedimentos previamente ao início da randomização.

Os pacientes foram considerados elegíveis caso eles se enquadrassem nas seguintes definições:

  • Idade maior ou igual a 18 anos
  • AVCi a partir da oclusão do segmento M1 artéria cerebral média (segmento proximal)
  • Janela de tempo entre o início dos sintomas e a realização do tratamento de no máximo 8 horas
  • Caso já tivessem tido um AVCi prévio, o paciente deveria ter boa funcionalidade, estabelecido com um escore de 0 a 1 na escala modificada de Rankin (ver abaixo)
  • Escore NIHSS maior que 8 (escore NIHSS varia de 0 a 42, de modo que escores mais elevados denotam déficits mais graves)

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Essencialmente, os pacientes não seriam incluídos no estudo caso eles apresentassem sangramento intracraniano recente, presença de grandes áreas de infarto cerebral (o que já definiria mau prognóstico independente do tipo de tratamento estabelecido) e caso não fosse evidenciada circulação colateral leptomeníngea em exame de angiotomografia de crânio.

Traduzindo em números, o paciente deveria ter uma área de infarto cerebral menor que 70mL, uma relação entre volume de área isquêmica e volume de área infartada maior ou igual a 1.8 e uma área de isquemia potencialmente reversível de pelo menos 15mL de tecido cerebral.

No total, 111 pacientes foram randomizados para o receberem trombectomia e 110 para o tratamento convencional. O NIHSS médio de ambos os grupos foi de 18. Alteplase foi realizada em 68.5% dos pacientes randomizados para o grupo intervenção e em 71.8% dos pacientes presentes no grupo controle.

A primeira análise interina foi feita quando 174 pacientes haviam chegado em 90 dias de seguimento, com melhores desfechos favorecendo o grupo submetido à trombectomia. Desse modo, obedecendo ao desenho original do estudo, foi interrompida a randomização nesse momento.

Em termos práticos, os pacientes que foram submetidos a trombectomia tinham 2.28 vezes mais chances de terem um desfecho mais favorável que os pacientes que não receberam essa intervenção, com uma escala de Rankin de pelo menos um ponto menor.

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Além disso, a porcentagem de pacientes que se mantinham independentes funcionalmente em 90 dias (Rankin de 0 a 2) foi de 35.1% no grupo trombectomia e 20% no grupo controle. O custo do tratamento foi em média U$8000 mais caro para o primeiro.

A incidência de hemorragia intracraniana sintomática foi de 4.5% em ambos os grupos. No entanto, hemorragias assintomáticas, sem repercussões clínicas, foi significativamente amior no grupo intervenção (51.4% vs 24.5%). A mortalidade em 90 dias foi menor naqueles submetidos a trombectomia, em termos numéricos, mas sem significância estatística.

O estudo atual mostra que a realização do tratamento convencional associado a trombectomia mecânica no atual cenário de saúde pública do Brasil, um país em desenvolvimento, correlaciona-se com melhores desfechos funcionais. Não obstante esse desfecho favorável, cumpre-se dizer que a mortalidade foi maior e que a funcionalidade dos pacientes foi menor, quando comparamos o estudo brasileiro com os estudos prévios, realizados em países desenvolvidos.

Como vantagens, citamos que o tempo transcorrido do início dos sintomas até a administração de alteplase foi menor no estudo brasileiro, quando comparado aos demais e que o tempo transcorrido para a punção arterial e realização de trombectomia foi similar. Os autores citam ainda que os maiores atrasos para o tratamento residem no fato de que, até mesmo os hospitais considerados como de referência, possuem apenas um ou dois aparelhos de tomografia, que são compartilhados por diversas especialidades, e isso representar um “gargalo” para o diagnóstico do AVCi.

Graças a esse estudo, sabemos que a aplicação da trombectomia para o tratamento do AVCi é factível, seguro e eficaz quando realizado em centros de referência do SUS. Frente a tais evidênicas, nos resta saber qual será a resposta do Ministério da Saúde. Na atual conjuntura econômica do Brasil e, sobretudo, considerando o cenário de pandemia pelo novo coronavírus sabemos que essa resposta será tardia.

Mas sejamos resilientes: façamos nosso melhor, com o que tivermos, aonde estivermos.

 

Referências:

Thrombectomy for Stroke in the Public Health Care System of Brazil, S.O. Martins, F. Mont’Alverne, L.C. Rebello, D.G. Abud, G.S. Silva, F.O. Lima, B.S.M. Parente, G.S. Nakiri, M.B. Faria, M.E. Frudit, J.J.F. de Carvalho, E. Waihrich, J.A. Fiorot, Jr., F.B. Cardoso, R.C.T. Hidalgo, V.F. Zétola, F.M. Carvalho, A.C. de Souza, F.A. Dias, D. Bandeira, M. Miranda Alves, M.B. Wagner, L.A. Carbonera, J. Oliveira‑Filho, D.C. Bezerra, D.S. Liebeskind, J. Broderick, C.A. Molina, J.E. Fogolin Passos, J.L. Saver, O.M. Pontes‑Neto, and R.G. Nogueira, for the RESILIENT Investigators, The  new england journal of medicine, 382:2316-26. DOI: 10.1056/NEJMoa2000120

 

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