Começou 2021 e seguimos com a série Top 10 Mitos em UTI
TOP 10 MITOS EM UTI – NEUROINTENSIVISMO
01 – Paciente entubado tem que estar sedado.
Mito!
Esse é um pensamento do século passado. Hoje, há apenas 3 indicações formais de coma induzido, com RASS -5 como alvo:
(1) SDRA Grave, em que o paciente precisa de bloqueio neuromuscular para melhor manejo da mecânica ventilatória;
(2) Hipertensão Intracraniana;
(3) Status de Mal Epiléptico.
Excetuando-se essas situações, devemos almejar um RASS -2 a 0, priorizando o conforto do paciente, procurando sempre a etiologia do desconforto e agitação. Sedação em excesso leva a uma série de complicações, como maior tempo de permanência em ventilação mecânica e UTI, Delirium, taquifilaxia e mortalidade. O recente Trial NONSEDA com 700 pacientes, publicado no NEJM em 2020, comparou uma estratégia de não sedação x sedação leve em pacientes em ventilação mecânica e não encontrou diferença na mortalidade em 90 dias. Ou seja, devemos não sedar nossos pacientes? Não! Porém, é mais um Trial falando a favor do mínimo de sedação possível para que o paciente esteja confortável.
Além disso, pacientes intubados, desde que estejam confortáveis, podem perfeitamente, iniciar mobilização precoce, sentar na poltrona e até mesmo caminhar pela UTI. É outra medida que muda desfechos a curto e longo prazo, diminuindo e muito a incidência de fraqueza muscular adquirida na UTI. O conforto do paciente está acima de tudo.
02 – Cetamina aumenta a PIC e é contraindicada em pacientes neurocríticos.
Mito!
Havia uma crença de que a Cetamina aumentava a PIC, principalmente naqueles pacientes que perderam a autorregulação cerebral. Hoje, o que não falta são metanálises a favor da Cetamina em pacientes neurocríticos.
A Cetamina é derivada de agentes anestésicos da ciclo-hexamina (Fenciclidina), comumente usados nos anos 50. É um antagonista do receptor NMDA do tipo não competitivo; bloqueia o sítio de ligação de Fenciclidina no receptor NMDA o que por sua vez impede a despolarização do neurônio. Os receptores do NMDA são localizados nos níveis espinhal, talâmico, límbico e cortical. Por isso, a Cetamina interfere com o input sensorial nos centros superiores do SNC, afetando as respostas de dor, emotivas e da memória (daí a definição como “anestésico dissociativo”). A Cetamina também apresenta efeitos secundários sobre os receptores de Opióides, os quais ajudam a propagar seu efeito analgésico, bem como sobre os receptores alfa, beta e de catecolamina.
Além disso, estimula o sistema nervoso simpático, causando taquicardia e aumentando o débito cardíaco e da pressão arterial, e broncodilatação, sendo uma excelente opção no Status Asmaticus.
Mas o que é autorregulação cerebral? Vamos lá…
Autorregulação Cerebral é a habilidade do sistema cerebrovascular em manter o fluxo sanguíneo cerebral (FSC) constante em um intervalo de pressão arterial média (PAM) amplo através de mecanismos fisiológicos diversos.
FSC = (PAC – PVJ) / RVC
PAC = Pressão Arterial Carotídea; PVJ = Pressão Venosa Jugular; RVC = Resistência Vascular Cerebral
PPC = PAM – PIC
PPC = Pressão de Perfusão Cerebral; PAM = Pressão Arterial Média; PIC = Pressão intracraniana
O FSC é mantido num nível relativamente constante pela autorregulação da RVC dentro de uma faixa da PAM (60 a 150 mmHg). Elevações da PAM são acompanhadas de vasoconstricção para proteger o cérebro da ‘’onda de pressão’’ e diminuir o FSC e diminuições da PAM são compensadas com vasodilatação para tentar aumentar o FSC. Dessa forma, a RVC mantém o FSC estável dentro dos seus limites de compensação. No entanto, em lesões cerebrais graves, como TCE, HSA e HIP, esse mecanismo pode ternar-se disfuncionante, ou seja, o aumento da PAM pode aumentar a PIC devido a perda da autorregulação cerebral. Como a Cetamina estimula o sistema nervoso simpático podendo aumentar a pressão arterial, acreditava-se que poderia aumentar a PIC… Que viagem, né?
Porém, por inibir o a ligação da Fenciclidina no NMDA, a Cetamina parece, de certa forma, ter até propriedades neuroprotetoras.
Além disso, o que nós queremos evitar num paciente neurocrítico? Hipotensão e Hipoxemia! A Cetamina não causa instabilidade hemodinâmica e ainda é broncodilatadora.
03 – Pacientes com Hemorragia Subaracnoidea devem receber a ‘’Terapia Triplo H’’.
Mito!
Daqueles 3H’s pilares do tratamento da HSA, Hipervolemia, Hipertensão e Hemodiluição, apenas a Hipertensão é recomendada atualmente.
Lembrando que a PPC = PAM – PIC
A Hipervolemia pode causar lesão do Glicocálix Endoletial, levando ao extravasamento de líquido para o espaço intersticial, trazendo consigo diversas complicações, como edema agudo pulmonar, hipertensão intra-abdominal (a HIA pode aumentar a PIC), lesão renal aguda, hemodiluição e etc. Dessa forma, temos que objetivar sempre a Euvolemia.
A Hemodiluição pode acarretar, como o próprio nome diz, na diluição dos fatores de coagulação, propiciando hemorragias e transfusões desnecessárias.
04 – O valor da PIC é o melhor parâmetro para tratamento da Hipertensão Intracraniana.
Mito!
Devemos ter muito cuidado em sintetizar toda a fisiologia e hemodinâmica do sistema nervoso central, que talvez seja a mais complexa do corpo humano, em apenas um número. A monitorização neurológica é multimodal. Mais importante do que o número absoluto, é a morfologia da onda da PIC, que se altera antes do valor dela.
Entendendo melhor, a PIC pulsa com cada onda pressórica cardíaca, que contém 3 picos consecutivos, em ordem decrescente de magnitude, que, no sistema intracraniano, representam:
P1 (percussion wave): transmissão e dissipação da onda de pulso do plexo coroide ao ventrículo. Resumindo, P1 = Fluxo Sanguíneo Cerebral
P2 (tidal wave): propagação e reverberação da onda de pulso influenciada pela complacência. Resumindo, P2 = Complacência Cerebral
P3 (dicrotic wave): fechamento da valva aórtica.
Com a diminuição da complacência cerebral, P2 aumenta e P1 torna-se achatada. P2 > P1 é uma das formas precoces de se detectar a diminuição da complacência cerebral.
Há diversos locais para monitorização da PIC: Intraparenquimatoso, ventricular, subdural e subaracnóideo. A inserção do cateter no ventrículo é a primeira escolha, pois, além de melhor acurácia, possibilita a drenagem do líquor.
É de extrema importância ressaltar 2 situações:
- Lesão de Fossa Média: Devido a proximidade do Uncus com o Lobo Temporal do Mesencéfalo, as herniações uncais podem não traduzir um aumento efetivo da PIC
- Lesão de Fossa Posterior: São as mais temidas devido ao risco de compressão do Tronco Encefálico. A Fossa Posterior comporta-se como um compartimento fechado, compacto e preenchido por Cerebelo, Tronco Encefálico, IV Ventrículo e Aqueduto Cerebral. Nesse contexto, qualquer lesão mínima nessa região pode levar a herniações fatais e com valores de PIC absolutamente normais.
Então, nunca tome uma conduta baseada APENAS no valor absoluto da PIC.
05 – ‘’O paciente está agitado e com dor. Vou aumentar o Propofol e o Midazolam!’’
Mito!
Um conceito simples: ‘’Analgesia-First Sedation’’. Analgesia em primeiro lugar.
Sendo bem prático:
– Sedação = o objetivo é reduzir o nível de consciência
– Analgesia = o objetivo é reduzir a dor
Um equívoco muito comum nas UTI’s é achar que, aumentando as infusões de Propofol e/ou Midazolam, conferiremos conforto ao paciente. Isso é um equívoco grave! Propofol e Midazolam não conferem analgesia. São sedativos, não analgésicos. Obviamente, há aqueles pacientes muito ansiosos que necessitam de sedação leve, mas não é a regra.
Já se deparou com aquele paciente politraumatizado ou em pós-operatória de cirurgia cardíaca ou abdominal, que está entupido de drenos e dispositivos? O paciente está agitado, recebendo Propofol e Midazolam em bomba infusora, você aumenta as doses dos sedativos e ele permanece desconfortável, ‘’brigando com o ventilador’’, taquicárdico, hipertenso… Então, esse paciente está com dor. Ele precisa de analgesia, não do aumento de sedação.
Há diversas formas de conferir analgesia a pacientes entubados (Dexmedetomidina, Cetamina, Fentanil, Remifentanil, Morfina, Metadona e etc.) e cada serviço tem seu protocolo. O importante é ter em mente que, antes de sedar ou aumentar a sedação, esteja convicto de que o paciente está com a analgesia otimizada.
06 – Pacientes com HSA Aneurismática e/ou TCE devem receber Fenitoína profilática.
Mito!
O uso de Fenitoína profilática não é recomendado de rotina. É sugerido seu uso naqueles pacientes que apresentaram-se com crise convulsiva.
07 – Pacientes com HSA aneurismática e/ou TCE devem receber Corticoide.
Mito!
E olha que, no TCE, a recomendação é Nível I. E no guideline de HSA da AHA, a Fludrocortisona é que é citada naqueles pacientes com difícil manejo da Hiponatremia, não para controle de edema cerebral.
Resumindo, corticoides devem ser reservados para aqueles pacientes com tumores e infecções de SNC.
08 – Todo paciente neurocrítico deve receber Inibidor de Bomba de Prótons (IBP) para profilaxia de úlcera por estresse.
Mito!
Não há necessidade de IBP em pacientes com dieta via oral. Nós vemos diariamente aquele Omeprazol quase que automático, lá no final na prescrição, não só de neurocríticos, mas de uma forma geral em pacientes internados em UTI. Há estudos, não tão robustos, mostrando que o uso indiscriminado de IBP’s em < 30 dias, pode predispor a infeções por C. difficile e pneumonias…
Bem, mas resumindo, as indicações de profilaxia farmacológica são:
– Ventilação Mecânica
– Hipertensão intracraniana
– Instabilidade Hemodinâmica
– Distúrbios de coagulação
– História pregressa de Hemorragia Digestiva Alta
09 – ‘’Sedar para dormir melhor’’
Mito!
Se você acha que pacientes sedados têm melhor qualidade de sono, pense dez vezes. O uso de Benzodiazepínicos, Propofol e Opioides pode suprimir o sono não REM de níveis II e IV, e quando você acha que seu paciente está dormindo como um anjo, ele está, na melhor das hipóteses, descansando as pálpebras.
Outro problema surge quando interrompemos a sedação e ocorre um rebote na atividade REM, às vezes levando a pesadelos. Pense na higiene do sono, luzes durante o dia, escuridão à noite, mobilização durante o dia, descanso durante a noite, evite medicamentos e manipulações desnecessárias durante a noite.
10 – ‘’Mas é só Delirium…’’
Devemos ter o cuidado de negligenciar a importância do delirium no paciente crítico. Deve ser tratado como qualquer outra disfunção orgânica e devemos dar a ela tanta atenção quanto damos a uma insuficiência renal ou cardíaca. O delirium afeta até 80% dos pacientes graves e 10% desses pacientes permanecem delirantes na alta hospitalar. Aumenta o tempo de permanência na UTI, a duração da VM e leva ao comprometimento da cognição mesmo após a alta hospitalar. O delirium é uma disfunção cerebral e marcador de gravidade da doença. Acrescente a tudo isso os custos financeiros do delírium, uma despesa adicional de US $ 4 a US $ 16 bilhões anuais. Não é só Delirium!
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