“Quem”, “como” e “por que” da SDRA – Parte II

Essa é a segunda parte de uma série de três publicações sobre a síndrome de desconforto respiratório agudo (SDRA). Na primeira parte, estudamos sobre as definições da SDRA, sobre sua fisiopatologia e sobre a epidemiologia dessa entidade, tão prevalente nas UTIs.

Agora, chegou o momento de conversarmos sobre os pilares do tratamento e sobre como abordar um paciente com SDRA na prática da UTI. Nesse texto, vamos nos pautar no que há de mais robusto em evidências científicas!

Introdução:

Para compreendermos a lógica do tratamento, devemos saber duas premissas sobre a SDRA:

  1. A SDRA é uma doença que cursa com heterogeneidade pulmonar.
  2. A SDRA é uma doença gravidade-dependente

Vamos explicar. A SDRA tem como característica histopatológica o dano alveolar difuso, lesão de células pulmonares e presença de edema inflamatório dentro dos alvéolos. Sob a ação da gravidade, esse edema literalmente escorre alvéolo-a-alvéolo e se deposita nas regiões gravidade-dependentes. Considerando que nosso paciente se encontra em decúbito dorsal e com a cabeceira do leito elevada a 30o, o edema se depositará nas regiões basais e posteriores dos pulmões.

Com isso, podemos dividir o pulmão em três zonas, conforme a figura abaixo:

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A. Área de alvéolos completamente preenchidos por edema inflamatório. Aqui, prevalecem a consolidação e a atelectasia e, portanto, o ar não consegue entrar nos alvéolos, diferente do sangue, que consegue perfundir tais áreas. Observamos que temos áreas que são perfundidas, mas que não são ventiladas. Em outras palavras, temos o efeito “shunt”!

B. Área de maior complacência pulmonar, com alvéolos menos preenchidos por edema inflamatório. Quando o paciente respira (ou quando o ventilamos com pressão positiva através da ventilação mecânica) o ar tende a ocupar preferencialmente essa região. Portanto, teremos aqui alvéolos hiperdistendidos. Isso trará duas consequências: a primeira é a perpetuação da resposta inflamatória, uma vez que esses alvéolos estarão sujeitos ao efeito lesivo do excesso de volume aéreo e de pressão em seu interior (volutrauma e barotrauma). A outra, é que ocorre um fenômeno de compressão mecânica dos capilares alveolares. Eles ficam “esmagados” entre dois alvéolos adjacentes (ambos hiperdistendidos). Agora, teremos áreas que são ventiladas, mas que não são perfundidas. Ou seja, teremos o efeito de “espaço morto”.

C. Zona de transição, uma área onde os alvéolos estão parcialmente preenchidos por edema inflamatório. Eles permanecem fechados durante quase toda a inspiração. Somente ao final da inspiração, quando a pressão dentro das vias aéreas é mais alta, eles se abrem. Na fase expiratória, eles novamente se colabam, determinando dessa forma, um processo de atelectasia cíclica (atelectrauma).

Teremos, então, um pulmão heterogêneo! As áreas de shunt (A) e de espaço morto (B) serão responsáveis por causar o fenômeno de hipoxemia, umas das marcas da SDRA. E qual o efeito da hipoxemia sobre a artéria pulmonar? Se você respondeu que a hipoxemia levará à vasodilatação pulmonar, bem… você se enganou! Isso é verdade para diversas artérias do corpo humano, mas não para a artéria pulmonar! Ocorrerá justamente o contrário! A hipoxemia levará a uma constrição dos ramos intrapulmonares dessa artéria. Os mecanismos que justificam esse fenômeno até hoje não estão completamente elucidados.

Bem… vamos continuar nosso raciocínio. Qual a importância da vasoconstrição da artéria pulmonar? Sabemos que o ventrículo direito (VD) não funciona bem com sobrecarga de pressão. Desse modo, VD não consegue ejetar o sangue com força suficiente para vencer a resistência vascular determinada por uma artéria pulmonar vasoconstrita. De um modo mais simples, é como se o sangue tivesse dificuldade de passar pelo pulmão e ficasse represado no leito venoso. Por fim, menos sangue chega até o ventrículo esquerdo, que é quem de fato bombeia o sangue oxigenado para os demais órgãos do corpo.

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Mas não para por ai! O coração só consegue manter a circulação às custas do aumento das pressões de enchimento do ventrículo direito. O VD fica dilatado e empurra o septo interventricular para o lado de VE. Esse é o famoso fenômeno de “Bernheim reverso”. Quando isso ocorre, o VE não consegue se encher plenamente de sangue durante a diástole. Ou seja, ocorre redução do enchimento diastólico final do VE, pelo simples fato de haver uma restrição imposta pelo septo interventricular que está deslocado, rechaçando o VE.

E, nesse momento, temos a essência do que chamamos de cor pulmonale: uma disfunção cardíaca decorrente de uma doença primária do pulmão (“o coração como reflexo do pulmão”). A redução do volume de sangue que chega até o VE (pré-carga de VE), associado à redução do volume sistólico (causado pelo efeito de “Bernheim reverso”, que impede o enchimento de VE), levam à diminuição do débito cardíaco e da oferta de oxigênio para os tecidos. Isso significa que o paciente pode evoluir para um estado de choque circulatório!

Até o momento falamos apenas sobre as consequências mais imediatas da hipoxemia. Não devemos nos esquecer de que, nesse pulmão doente e heterogêneo da SDRA, ainda existem os fenômenos de hiperdistensão alveolar (área B) e de atelectasia cíclica (área C). A cada ciclo respiratório, milhares de alvéolos são submetidos a volutrauma, barotrauma e atelectrauma. Esses mecanismos repetidos de lesão alveolar fazem com que a resposta inflamatória imunomediada seja, não apenas perpetuada, como também amplificada! E a consequência é a piora do edema intra-alveolar, piora da SDRA e agravamento estado de choque circulatório!

Por isso a ventilação mecânica é tão importante na SDRA! Caso não ventilemos nosso paciente de modo criterioso, pensem nas consequências disso! Quantos milhões de alvéolos sofrerão hiperdistensão e/ou atelectasia, repetidas vezes a cada minuto, durante várias horas do dia, em um paciente sedado, intubado, sem condições de se expressar e que, por isso, a piora gasométrica, pode passar desapercebida!

Baby Lung e Ventilação Protetora

Na década de 1980, o advento da tomografia computadorizada modificou profundamente os conceitos sobre SDRA. Ficou claro que, o que antes parecia ser um pulmão homogeneamente congesto em uma radiografia de tórax, era, na verdade, um pulmão heterogêneo na tomografia, com as áreas hiperdensas mais evidentes nas regiões gravidade-dependentes. Quando foi possível aquisições volumétricas com o uso da tomografia, observou-se que a região efetivamente ventilada do pulmão de um paciente com SDRA correspondia a apenas 200 a 500g de tecido. Isso perfaz o mesmo tamanho do pulmão de uma criança de cinco ou seis de anos de idade. Assim, foi cunhado o conceito de “baby lung”.

Quando ventilamos um paciente com SDRA, não estamos ventilando necessariamente um pulmão pouco complacente, mas sim um pulmão pequeno! Dessa forma, fica fácil entender porque é preconizada a ventilação com baixos volumes correntes. Caso sejam utilizados volumes correntes elevados, os alvéolos serão expostos a mais hiperdistensão e, portanto, a mais lesão.

No entanto, antes dos anos 2000 não era desta forma que os pacientes com SDRA eram ventilados. O mais comum era que os pacientes fossem ventilados com volume corrente elevado, cerca de 12 ml/kg. O racional para essa estratégia era manter a pressão arterial de CO2 (PaCO2) baixa, evitando-se a acidose respiratória.

Estávamos diante de duas situações: volume corrente elevado, evitando acidose respiratória, mas podendo ocasionar lesão pulmonar induzida pela ventilação, contra volume corrente baixo, evitando dano alveolar, mas aceitando-se as consequências de uma possível acidose.

Um dos passos mais importantes foi dado em 1998, pelo médico e pesquisador brasileiro, Marcelo Amato. Foi publicado o conceito de ventilação protetora, que correspondia a um volume corrente de 6ml/kg (de peso predito), driving pressure (pressão platô – PEEP) menor que 20 cmH2O e hipercapnia permissiva, ajustando a PEEP individualmente conforme a curva de histerese pulmonar. Dos 53 pacientes estudados (29 no grupo ventilação protetora e 24 no grupo convencional) houve redução de mortalidade de 71% para 38% favorecendo VM protetora.

Dois anos depois, em 2000, um grupo de pesquisadores constituintes ARDSNet publicou o ARMA trial. Foram comparadas as estratégia convencional de ventilação (12ml/Kg e pressão de platô menor que 50cmH2O) e a protetora (6ml/kg e pressão de platô menor que 30cmH2O)

O ARMA trial teve que ser interrompido precocemente pois, no grupo convencional, a mortalidade era por demais elevada! Do total de 861 pacientes (432 no grupo intervenção e 429 no grupo controle) houve redução da mortalidade de 39,8% para 31%, além de mais dias livres de ventilação e dias sem novas disfunções orgânicas não pulmonares.

Nesse estudo, a PEEP foi ajustada a partir de uma tabela chamada PEEP table. Essa tabela é o fruto de uma discussão de um grupo de especialistas, composto pelos principais representantes dos hospitais integrantes do ARDSnet. Ela representa a tentativa de se chegar em um equilíbrio no de ajuste da PEEP e da FiO2, a fim de se manter uma oxigenação adequada para o paciente, sem os efeitos deletérios de uma PEEP elevada sobre sua hemodinâmica e também sem o fenômeno de atelectasia de reabsorção, causada por uma FiO2 próxima de 100%.

Prona ou não prona?

Entendemos até agora a estratégia de ventilação protetora e o conceito de hipercapnia permissiva. No entanto, não existe o conceito de “hipoxemia permissiva” e as baixas pressões arteriais de oxigênio (PaO2) eram um problema no manejo dos pacientes com SDRA grave.

Uma curiosa estratégia que já vinha sendo realizada de maneira recorrente nas diversas UTIs do mundo com o objetivo de melhorar a oxigenação dos pacientes com SDRA era posicioná-los em prona (de barriga para baixo). O vídeo a seguir mostra a técnica adequada para realizar a pronação, de acordo com as orientações do New England Journal of Medicine: https://www.youtube.com/watch?v=E_6jT9R7WJs .

Mas por que posicionar um paciente em decúbito ventral melhora a sua oxigenação? A resposta é simples. Vocês se lembram que a SDRA é uma doença gravidade dependente? Pois bem. Quando modificamos a posição de um paciente de decúbito dorsal para ventral, o edema alveolar, em um processo dinâmico, literalmente escorre de alvéolo-a-alvéolo e passa a migrar das regiões posteriores para as anteriores dos pulmões. E quando isso ocorre, os alvéolos antes não ventilados (pois estavam repletos de edema inflamatório e com todo o peso do parênquima pulmonar sobre eles), se tornam aerados. Ou seja, a pronação pode ser interpretada como uma manobra de recrutamento alveolar.

Além disso, nesse processo de redistribuição do edema inflamatório, a pronação acaba por tornar o pulmão um pouco menos heterogêneo. O ar penetrará em um maior número de unidades alveolares e, portanto, as forças de distensão dentro de cada uma delas, será menor. Esse é um ponto crucial para a redução da reposta inflamatória em contexto de SDRA.

Outro ponto a ser ressaltado é que, quando resolvemos (ou pelo menos atenuamos) o problema da hipoxemia, os ramos artéria pulmonar que se encontravam constritos, retomam seu calibre usual e, consequentemente, há uma melhora no funcionamento cardíaco e hemodinâmico do paciente. É comum presenciarmos a melhora da oxigenação e o desmame e drogas vasoativas em pacientes submetidos à prona.

No entanto, não se trata de uma manobra isenta de riscos e cuidados especiais devem ser tomados caso coexistam condições de instabilidade hemodinâmica importante, neuro-trauma, gestação, pós operatório de cirurgia abdominal, etc. As principais complicações que podem se associar à prona são: parada cardiorrespiratória, bradicardia, extubação inadvertida, intubação seletiva, hemoptise, dessaturação e hipoxemia.

No ano de 2013 foi publicado um ensaio clínico randomizado e multicêntrico, com 26 UTIs participantes na França e uma na Espanha: o estudo PROSEVA. Nele, pacientes que persistiam com SDRA moderada a grave (relação PaO2/FiO2 < 150), a despeito de uma estratégia protetora de ventilação mecânica (volume corrente de 6ml/Kg), eram randomizados para serem submetidos à pronação (grupo intervenção) ou para permanecerem em posição supina (grupo controle). Importante notar que a intervenção deveria ser feita de modo precoce, ou seja, nas primeiras 48 horas da doença! Todas as UTIs do estudo já tinham uma boa experiência com a pronação: essa manobra era realizada de modo rotineiro há pelo menos 5 anos em cada uma delas. Ao ser submetido à prona, o paciente deveria permanecer nessa posição por 16 horas e ser despronado por 8 horas a cada dia.

No total, foram randomizados 237 pacientes para o grupo prona e 229 pacientes para o grupo supina. Os resultados foram animadores! A mortalidade em 28 dias foi 16% no primeiro e 32,8% no segundo, com significância estatística. Além disso, a mortalidade em 90 dias foi 23.6% contra 41%, também favorecendo a pronação. E, como se não bastasse, não houve diferença significativa quanto às complicações, exceto pela incidência de parada cardiorrespiratória, que foi maior no grupo controle (supina). A prona, quando realizada de modo criterioso e por uma equipe treinada se mostrou segura e efetivamente conseguiu reduzir a mortalidade. Em média, os pacientes necessitaram da manobra de pronação (16 horas de prona + 8 horas de supina) por 4 dias.

Conclusão

Tanto o ARMA trial quanto o PROSEVA são estudos clássicos dentro do universo da Terapia Intensiva. Eles conseguiram demonstrar, de modo contundente, redução de mortalidade com as estratégias de ventilação mecânica protetora e de posição prona.

No entanto, outras perguntas, como ajuste de PEEP, driving pressure, recrutamento alveolar e uso de bloquedor neuromuscular na SDRA ainda permanecem sem uma resposta definitiva.

Nossa opinião é que devemos nos ater às práticas que têm benefício comprovado antes de tentarmos terapias adjuvantes, cujo benefício é incerto mas que talvez possam ter um valor como tratamento de resgate ou para casos refratários.

Esse texto é uma produção conjunta de Thiago José Fernandes de Souza, CREMESP 171.280, médico residente do segundo ano do programa de Medicina Intensiva da UNIFESP, plantonista do grupo PacienteGraveUTI; e Felipe Cavatoni, CREMESP 185.933, médico intensivista, preceptor acadêmico do programa de Medicina Intensiva da UNIFESP, diarista e plantonista do grupo PacienteGraveUTI.

Referências:

Acute Respiratory Distress Syndrome, Review Article, B. Taylor Thompson, M.D., Rachel C. Chambers, Ph.D., and Kathleen D. Liu, M.D., Ph.D., The New England Journal of Medicine, 377;6, August 10 2017

Acute respiratory distress syndrome, Michael A. Matthay, NATURE REVIEWS | DISEASE PRIMERS, 2019, 5:18

Ventilation With Lower Tidal Volumes As Compared With Traditional Tidal Volumes For Acute Lung Injury And The Acute Respiratory Distress Syndrome, THE ACUTE RESPIRATORY DISTRESS SYNDROME NETWORK, The new England Journal of Medicine, Number 18, Volume 342, May 4, 2000

Prone Positioning in Severe Acute Respiratory Distress Syndrome, for the PROSEVA Study Group, The New England Journal of Medicine, Volume 368, No23, june 6, 2013

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