Essa é a primeira parte de uma série de três publicações que visam à abordagem da síndrome de desconforto respiratório agudo (SDRA). Nesse primeiro texto, discutiremos sobre os critérios diagnósticos, a fisiopatologia e os aspectos epidemiológicos dessa condição, tão importante e prevalente nas UTIs do Brasil e do mundo.
No segundo e terceiro textos, vamos discorrer sobre os principais artigos científicos publicados até o momento, nos aprofundado sobre o tratamento. Vamos nos respaldar no que há de mais contundente em evidências científicas.
Prontos para compreender de uma vez por todas esse assunto? Então vamos lá!
Definição
Definida pela primeira vez em 1967, por David G. Ashbaugh, como uma condição semelhante à observada em crianças com doença da membrana hialina, a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) é caracterizada como uma manifestação aguda associada a taquipneia, hipoxemia e redução da complacência pulmonar. Trata-se de um desafio na prática de todos aqueles que lidam com pacientes graves!
Publicado no JAMA (Journal of the American Medical Association) em 2012, os critérios de Berlim têm como objetivo uniformizar o diagnóstico da SDRA, utilizando dados epidemiológicos e fisiopatológicos:
- Tempo de início dos sintomas em até 7 dias de um evento agudo.
- Infiltrado pulmonar bilateral identificado em imagem radiográfica, excluindo nódulos, atelectasias e derrame pleural.
- Origem do edema não completamente justificado por sobrecarga volêmica ou insuficiência cardíaca. Para tal, utiliza-se como parâmetro uma POAP ≤ 18 mmHg (pressão de oclusão de artéria pulmonar).
- Queda da oxigenação, expressa por uma relação PaO2/FiO2 menor que 300 (utilizando-se de uma PEEP de pelo menos 5cmH2O).
Nesse momento, fica claro que, por se tratar de uma síndrome, diversas doenças ou condições podem evoluir para SDRA, como pneumonia, sepse de qualquer foco, pancreatite, politrauma, lise tumoral, pós operatório de cirurgia cardíaca com circulação extra-corpórea, etc. Além disso, o critério diagnóstico de uma POAP ≤ 18 mmHg encontra-se em desuso, dado à crescente familiaridade e ao uso recorrente da ecografia por médicos intensivistas. Outro ponto importante é que a gravidade da SDRA é definda pela relação PaO2/FiO2, classificando-a como leve (relação PaO2/FiO2 300 a 200), moderada (200 a 100 ) ou grave (menor que 100).
Os critérios de Berlim, muito embora tenham conseguido criar um consenso sobre as definições da SDRA, devem ser analisados com críticas quando aplicados à prática diária da UTI. O fato de um paciente apresentar insuficiência cardíaca ou um adenocarcinoma de pulmão, por exemplo, não exclui a possibilidade de ele evoluir com a síndrome de desconforto respiratório. E a coexistências de tais condições não deve atrasar o diagnóstico da síndrome.
Simples não? Fica até fácil de criar mnemônicos para decorar os critérios diagnósticos, como “OTChO”: Oxigenação (relação PaO2/FiO2), Tempo de início, Chest ray (imagem radiológica) e Outro diagnostico (excluir outras causas).
Fisiopatologia
Sobre a fisiopatologia, podemos dividir evolutivamente a SDRA em 3 fases: exudativa, proliferativa e de transformação:
1. Fase exudativa: é marcada por dano alveolar difuso, onde algum agente lesivo promove a ativação da resposta imune inata. Ou seja, algum agente infeccioso como vírus ou bactérias, ou a presença de conteúdo gástrico, ou mesmo uma resposta inflamatória à distância, leva a ativação de macrófagos alveolares, que por sua vez ativam linfócitos T e neutrófilos. Nesse momento, ocorre a produção de diversos mediadores inflamatórios que, em última análise, levam à lesão de pneumócitos tipo II, redução da produção de surfactante, lesão da membrana basal dos pneumócitos tipo I e aumento da permeabilidade dos capilares alveolares. A consequência é a inundação dos alvéolos com um edema hialino, rico em proteínas. Ainda nessa fase, a resposta inflamatória é capaz de ativar a cascata da coagulação e promover a formação de trombos na microcirculação. Veja a figura abaixo:
2.Fase proliferativa: a segunda fase da SDRA é caracterizada por uma resposta do organismo a fim de restabelecer a homeostase do parênquima pulmonar. Trata-se de uma resposta adaptativa, com o recrutamento de fibroblastos. Eles secretam uma matriz de colágeno provisória, que se deposita entre o alvéolo e o capilar alveolar. Há ainda estímulo à proliferação das células precursoras dos pneumócitos tipo I e tipo II, fagocitose de neutrófilos apoptóticos e restabelecimento das “tight junctions” entre as células alveolares (figura abaixo, parte A)
3. Fase de transformação (ou fibrótica): a fase final da SDRA não ocorre em todos os pacientes, mas se correlaciona a um tempo de ventilação mecânica prolongado e ao aumento da mortalidade. A lesão persistente ou extensa da membrana basal e um processo de regeneração tardio leva ao desenvolvimento de fibrose intersticial e alveolar (figura abaixo, parte B)
Aspectos do tratamento e epidemiologia
Até o momento, não existe nenhuma medicação validada de forma contundente para reverter a SDRA. Devemos simplesmente tratar a causa de base e esperar que o processo de lesão pulmonar se resolva, evitando-se a iatrogenia. O paciente com SDRA apresenta insuficiência respiratória e deve, por diversas vezes, ser intubado e ventilado com uma estratégia protetora! Mas você sabe o que é uma ventilação protetora? Esse termo foi cunhado para designar um ajuste de ventilação mecânica que utiliza um volume corrente de até 6ml/Kg de peso predito e uma pressão de platô menor que 30cmH2O.
Devemos ser obsessivos com esses dois critérios (volume corrente e pressão de platô) e respeitá-los ao máximo! Mesmo que o paciente evolua com uma acidose respiratória (leve ou moderada) há o conceito de hipercapnia permissiva, onde uma pressão arterial de CO2 (PaCO2) de até 60mmHg e/ou um pH arterial de até 7,20 podem ser tolerados desde que isso não traga repercussões clínicas ou hemodinâmicas para o paciente.
Se tudo parece ser tão fácil, será que após esses 52 anos desde a descrição da síndrome, estamos ventilando os pacientes da melhor maneira possível? Sabemos prontamente reconhecer SDRA? O estudo LUNG SAFE, publicado também no JAMA em 2016, nos ajudou a responder a essas e outras perguntas.
Trata-se de uma coorte internacional, multicêntrica e prospectiva. Foram analisados 2813 pacientes em 50 países diferentes, utilizando os critérios de Berlim para fim diagnóstico. Foram incluídos pacientes em ventilação mecânica invasiva e não invasiva, durante 4 semanas no inverno, tanto no hemisfério norte quanto no hemisfério sul. A SDRA correspondeu a 10,4% das admissões em UTI. Desse total, somente 60,2% tiveram o diagnostico estabelecido pelo médico assistente previamente à admissão em UTI, sendo mais comum nos casos graves (78,5%). Somado a isso, somente 34% dos casos eram diagnosticados de modo precoce.
Em relação à ventilação mecânica (VM), a média do volume corrente (Vt) foi de 7,6 ml/kg, a pressão de platô foi medida em somente em 40,1% dos pacientes, com valor médio de 23,2cmH2O.
A figura abaixo mostra a relação entre Volume corrente e pressão de platô no primeiro dia de VM. Nota-se que dois terços dos pacientes se encontravam no quadrante inferior esquerdo (Vt < 8ml/kg e pressão de platô < 30cmH2O). Entretanto, ao traçarmos uma linha (tracejada em vermelho), separando o volume corrente 6ml/kg, é possível verificar que a grande maioria dos pacientes foi ventilada com Vt maior que 6 ml/kg, ou seja, não foi estabelecida uma estratégia protetora de ventilação!
Outro fato interessante é que, quando analisamos o uso de terapias adjuvantes, em pacientes com SDRA grave, o bloqueio neuromuscular foi utilizado em 37,8% dos pacientes, manobras de recrutamento alveolar em 32,7% e posição prona em apenas 16,3% . Isso, a despeito da publicação do estudo “PROSEVA” de 2013 que evidenciou redução mortalidade no grupo submetido à prona.
E sobre a mortalidade? Bem, apesar da redução ao longo dos anos, a mortalidade ainda é elevada (35,3%), aumentando conforme a gravidade da doença (42,9% para SDRA grave). Os pacientes que sobrevivem à SDRA têm ainda maior risco de desenvolverem declínio cognitivo, depressão, síndrome de estresse pós-traumático e fraqueza muscular persistente.
Então meu caro leitor, desde 1967, temos entendido melhor a fisiopatologia da síndrome do desconforto respiratório agudo e, a partir disso, estratégias ventilatórias que compreendem a mecânica pulmonar foram desenvolvidas e tiveram um impacto marcante sobre a redução da mortalidade nesse grupo e pacientes.
Não obstante, o atraso no reconhecimento e no tratamento da SDRA, a necessidade de aprimoramento profissional sobre técnicas ventilatórias protetoras e a própria gravidade da condição, tornam a mortalidade dessa síndrome ainda elevada.
Esse texto é uma produção conjunta de Thiago José Fernandes de Souza, CREMESP 171.280, médico residente do segundo ano do programa de Medicina Intensiva da UNIFESP, plantonista do grupo PacienteGraveUTI; e Felipe Cavatoni, CREMESP 185.933, médico intensivista, preceptor acadêmico do programa de Medicina Intensiva da UNIFESP, diarista e plantonista do grupo PacienteGraveUTI.
Referências:
- Acute Respiratory Distress Syndrome, The Berlin Definition, The ARDS Definition Task Force*, JAMA, May 21, 2012
- Acute Respiratory Distress Syndrome, Review Article, B. Taylor Thompson, M.D., Rachel C. Chambers, Ph.D., and Kathleen D. Liu, M.D., Ph.D., The New England Journal of Medicine, 377;6, August 10 2017
- ACUTE RESPIRATORY DISTRESS IN ADULTS, DAVID G. ASHBAUGH, D. BOYD BIGELOW, THOMAS L. PETTY, BERNARD E. LEVINE, The Lancet , August 12, 1967
- Epidemiology, Patterns of Care, and Mortality for Patients With Acute Respiratory Distress Syndrome in Intensive Care Units in 50 Countries, Giacomo Bellani, MD, PhD; John G. Laffey,MD, MA; Tài Pham, MD; Eddy Fan, MD, PhD; Laurent Brochard, MD, HDR; Andres Esteban, MD, PhD; Luciano Gattinoni, MD, FRCP; Frank van Haren, MD, PhD; Anders Larsson, MD, PhD; Daniel F. McAuley, MD, PhD; Marco Ranieri, MD; Gordon Rubenfeld, MD, MSc; B. Taylor Thompson, MD, PhD; HermannWrigge,MD, PhD; Arthur S. Slutsky,MD, MASc; Antonio Pesenti, MD; for the LUNG SAFE Investigators and the ESICM Trials Group, JAMA February 23, 2016 Volume 315, Number 8