Profilaxia para úlcera de estresse: uma discussão para médicos e monstros

Não existe nada que me agrada mais que a rotina de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Somos desafiados diariamente e levados ao nosso extremo de aperfeiçoamento, técnico e pessoal.

Mas a rotina pode nos trazer alguns vícios nem sempre benéficos. Aqueles hábitos que acatamos como “boas práticas de saúde” e as desempenhamos sem pensar, na ilusão de estarmos beneficiando o paciente. E, mais ainda, se não as realizarmos, podemos ser vítimas de críticas ferrenhas por parte de outros médicos e profissionais da área da saúde.

Dentre tais práticas, nada mais “inocente” que um omeprazol, não? Afinal, nenhuma prescrição estaria completa sem aquele protetor gástrico, e de preferência venoso!

Não é bem assim. Será que todos os pacientes internados em uma UTI precisam de profilaxia para úlcera de estresse? Quais são os riscos e benefícios de sua prescrição? Entre omeprazol e ranitidina, qual é melhor? E essa tal ranitidina, que saiu do mercado brasileiro; por quê?

Nas próximas linhas, vamos responder todas essas perguntas. Então, prepare o seu café, ajuste os alarmes de sua UTI, e deixe o time da PacienteGraveUTI aflorar o seu lado de “Dr. Jekyll” e reduzir a tentação de virar o “Mr. Hyde”!

A produção de ácido pelo estômago é dependente de um tipo de célula, chamada de célula parietal. Ela tem a propriedade de secretar hidrogênio para o lúmen gástrico e absorver potássio. Essa é a famosa bomba de hidrogênio!

A célula parietal pode ser estimulada por três substâncias diferentes: histamina, acetilcolina e gastrina. Cada uma tem seu receptor específico e atua de maneira distinta para aumentar a produção de ácido.

Atualmente, são mais disponíveis para o uso hospitalar dois tipos de medicamentos antiácidos: os inibidores diretos da bomba de hidrogênio (ou inibidores da bomba de prótons/IBP) e os bloqueadores do receptor de histamina (ou inibidores do receptor H2/ IRH2).

São exemplos de IBPs o omeprazol, pantoprazol, rabeprazol e esomeprazol. Como representantes de IRH2, temos as seguintes medicações: ranitidina, cimetidina e famotidina. No dia 26 de janeiro de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou do mercado a ranitidina produzida pela empresa indiana Sacara Laboratories Limited. O motivo foi a detecção de elevados níveis de N-nitrosodiletilamina (NDMA), uma substância que pode ser cancerígena. O NDMA é um contaminante natural que pode ser facilmente encontrado em baixos níveis em água e alimentos. O risco desse componente químico ao organismo humano ainda não é bem estabelecido, e as ações de proibição tem caráter preventivo. Elas seguiram as determinações da Food and Drug Administration (FDA), que encontrou a mesma alteração em lotes de ranitidina da empresa Sandoz, lá nos Estados Unidos.

Em 1969 Skillman e colaboradores reportaram pela primeira vez uma síndrome caracterizada pela formação de úlceras de fundo gástrico em sete dos 150 pacientes (5%) internados em uma UTI. Esses pacientes tinham como doença de base insuficiência respiratória, hipotensão e sepse.

Até momento, a melhor explicação para esse fenômeno é que o contexto de choque circulatório e de jejum prolongado (uma prática comum e, muitas vezes, desnecessária na UTI), faz com que a mucosa do estômago seja mal perfundida. Em outras palavras, o sangue tem dificuldade de irrigar as células do estômago e do intestino através da circulação esplâncnica. As consequências são a redução das barreiras de defesa do estômago, o refluxo de sais biliares do duodeno para o estômago e a manutenção da produção basal de ácido clorídrico pelas células parietais. Essa é a tríade que justifica a formação das úlceras de estresse.

Em 1978 foi publicado o primeiro estudo que randomizou 100 pacientes graves e sob risco de formação de úlcera de estresse para receberem antiácido mineral ou placebo. Dos 51 pacientes do grupo intervenção, apenas 2 (4%) tiveram sangramento digestivo. Um número pequeno quando comparado aos 12 dos 49 (25%) pacientes do grupo controle.

À medida que os anos passaram e a indústria farmacêutica desenvolveu outras medicações (IBPs e IRH2) para a redução da produção de ácido pelo estômago, a adoção de medidas para profilaxia de úlcera de estresse foi se tornando mais comum.

Em 2007 a “Joint Commission and the Institute for Healthcare Improvement”, uma das mais reconhecidas entidades de acreditação de cuidados hospitalares, recomendou como medida de qualidade assistencial que todos os pacientes que estivessem sob ventilação mecânica recebessem algum tipo de profilaxia para úlcera de estresse.

No entanto, a profilaxia para úlcera de estresse não é ausente de riscos! A supressão da produção de ácido pelo estômago está associada a colonização do trato digestivo alto por microrganismos patogênicos. Alguns estudos apontam para o aumento do risco de pneumonia hospitalar. Herzig e colaboradores publicaram um estudo de coorte em 2009, indicando que o risco de pneumonia hospitalar era 2.6 vezes maior no grupo que recebeu algum tipo de protetor gástrico (IBP ou IRH2).
Além disso, alguns estudos apontaram para um possível aumento de casos de diarreia causada por Clostridium dificile. Em estudos de caso-controle e de coorte, a incidência de colite pseudomembranosa era cerca de 2 a 2.7 vezes maior em pacientes que usavam terapia para supressão ácida. Isso tudo, sem falar nas possíveis interações medicamentosas causadas tanto pelos IBPs quanto pelos IRH2.

Em um estudo multicêntrico e internacional, publicado em 2015 por Krag e colaboradores, a prevalência de sangramento gastrointestinal em pacientes internados em UTI foi de 2.6% . Nesse estudo, o sangramento ocorria dentro das primeiras 48 horas de internação. Isso aponta para a importância da identificação e do início precoce da profilaxia gástrica para pacientes considerados de risco. Foram identificados os seguintes fatores de risco para sangramento gastrointestinal importante: coexistência de 3 ou mais doenças, hepatopatia crônica, necessidade de terapia renal substitutiva, coagulopatia, escore de SOFA elevado. Nesse estudo, cerca de 73% dos pacientes recebiam algum tipo de terapia para supressão ácida durante a internação em UTI. No entanto, seu uso não se associou a redução da mortalidade hospitalar em 90 dias.

No ano de 2018, o mesmo autor publicou um ensaio clínico randomizado, comparando o uso de profilaxia gástrica com pantoprazol ou o uso de placebo em pacientes críticos. Nesse estudo, não houve diferença estatisticamente significativa em relação à mortalidade em 90 dias. Além disso, quando analisamos o desfecho secundário (pelo menos um dos seguintes: sangramento gastrointestinal, pneumonia, infecção por Clostridium dificile ou isquemia miocárdica), também não houve diferenças entre os grupos. Muito embora, quando analisamos a incidência de sangramento gastrointestinal, nota-se uma tendência a sangramentos mais frequentes no grupo placebo (4.2%) em relação ao grupo que usou pantoprazol (2.5%).

Ainda em 2018, foi publicada por Huang e colaboradores, uma meta-análise de 7 artigos comparando o uso de profilaxia gástrica para pacientes em contexto de terapia nutricional enteral. Essa análise demonstrou que, desde que o paciente esteja recebendo nutrição enteral , não há necessidade de uso de profilaxia gástricapois o risco de sangramento foi o mesmo.

Em janeiro de 2020 foi publicado um ensaio clínico randomizado, chamado PEPTIC. Esse ensaio clínico internacional e multicêntrico teve como objetivo comparar o uso de IBP e de IRH2 em pacientes internados em UTI. A mortalidade em 90 dias foi semelhante entre ambos os grupos. No entanto, quando analisamos a ocorrênciade sangramento gastrointestinal, notamos uma diferença. O grupo que usou IBP apresentou incidência de 1.3% de sangramento gastrointestinal. Enquanto isso, o que usou IRH2, essa incidência foi de 1.8%, com significância estatística.

Não obstante, devemos fazer uma ressalva a esse estudo. Por critérios do médico assistente que estava conduzindo o caso, era permitida a troca da medicação incialmente designada para o paciente. Isso resultou em uma “mistura” de medicações (chamado de crossover) e cerca de 20% dos pacientes incialmente designados para receberem IRH2 receberam IBP em algum momento do estudo. Para o grupo designado para receber IBP, cerca de 4% receberam IRH2 em algum momento. Esse fato deve suscitar uma avaliação mais judiciosa sobre os resultados do estudo PEPTIC .

Resumindo o que foi visto até agora: a profilaxia para úlcera de estresse não deve ser usada para todos os pacientes de UTI!

Devemos utilizá-la, com IBPs ou com IRH2 para pacientes de alto risco para ulcera de estresse. Sobretudo para aqueles intubados não recebendo nutrição enteral, para aqueles com coagulopatia (INR > 1,5, TTPa > 2 x o valor referência), choque circulatório grave, hepatopatia crônica, lesão renal aguda, escore de SOFA elevado.

É importante o início precoce (dentro das primeiras 48 horas). Seu uso reduz a incidência de sangramento gastrointestinal, mas não a mortalidade em 90 dias. Há evidências não muito consistentes sobre aumento de pneumonia hospitalar (incluindo pneumonia associada a ventilação mecânica) e de colite pseudomembranosa, causada por Clostridium dificile. Não existem dados consistentes sobre desfechos de funcionalidade e cognição em longo prazo.

Caso tenhamos que escolher entre IBPs e IRH2, a melhor evidência que temos atualmente fala a favor do uso de IBPs. Não há evidências sobre a melhor via de administração (enteral ou venosa).

E como ressalva, gostaríamos de lembrar sobre o risco de obstrução de sonda enteral (SNE) com o uso de IBPs. Na verdade, o único IBP validado pelo laboratório para administração via SNE é o esomeprazol. Esse risco não existe com os IHR2.

Além disso, o omeprazol pode reduzir a ação do clopidogrel por mecanismo de competição com enzimas do citocromo P450. Alguns estudos indicam que esse evento ocorre com todos os IBPs, mas que é mais frequente com o omeprazol. O pantoprazol por sua vez tem o menor efeito inibitório sobre o clopidogrel quando comparado aos outros IBPs. As últimas recomendações da American Heart Association sugerem que a profilaxia gástrica em pacientes em uso de dupla antiagregação plaquetária com AAS e clopidogrel seja feita com IBPs, mas não faz menção a qual agente é preferível. Fazemos a nossarecomendação que seja dada preferência ao pantoprazol.

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