Desde a publicação do primeiro caso bem sucedido de uso de uma membrana de oxigenação extracorpórea (ECMO) em 1972, diversos outros estudos foram conduzidos ao longo dos anos, na tentativa de comprovar o real benefício dessa intervenção.
Cumpre-se dizer que a estratégia de ventilação mecânica protetora apenas se fundamentou no ano 2000, com o estudo ARMA. Além disso, o respaldo para a posição prona em pacientes com hipoxemia refratária ocorreu ainda mais tardiamente, no ano de 2013, com o estudo PROSEVA.
Dessa forma, a análise dos artigos sobre o uso de ECMO em contexto de síndrome de desconforto respiratório agudo, antes dos anos 2000, deve ser feita com críticas. Afinal, o contexto do paciente é outro quando instalamos uma ECMO como terapia de resgate para um paciente que já fora submetido ao que, de fato, há evidência na literatura: ventilação mecânica protetora e posição prona.
O primeiro ensaio clínico de relevância foi publicado em 1979, por Warren Zapol, no JAMA (journal of american medical association). Nesse estudo multicêntrico, 90 pacientes foram alocados em dois grupos: o grupo controle receberia estratégia de ventilação mecânica, o grupo intervenção receberia, além de ventilação mecânica, suporte de circulação extracorpórea, por meio de ECMO veno-venosa. Para serem randomizados, os pacientes deveriam estar em contexto de hipoxemia, ou seja, deveriam apresentar um dos seguintes critérios:
- PaO2=50mmHg + FiO2=100% + peep>5cmH2O por 2 horas
- PaO2=50mmHg + FiO2>60% + peep>5cmH2O por 48 horas
O objetivo era avaliar a redução de mortalidade em 30 dias. Os resultados não foram muito animadores. Dos 48 pacientes alocados para o grupo de ventilação mecânica, 44 faleceram. No grupo alocado para receberem ECMO e ventilação mecânica, de 42 pacientes, 38 faleceram. Isso perfaz uma mortalidade semelhante entre os dois grupos, em torno de 90%. A maioria dos pacientes faleceram por redução da capacidade de troca gasosa, redução da complacência pulmonar, inflamação, necrose e fibrose pulmonar. Todos esses, desfechos associados à história natural da SDRA.
A conclusão mais cartesiana seria a de que o uso de ECMO não se associa à redução de mortalidade em contexto de insuficiência respiratória aguda. No entanto, quando analisados à luz do conhecimento atual, conclui-se que os reais desfechos foram ofuscados pelo desconhecimento sobre os conceitos de lesão pulmonar induzida pela ventilação mecânica (VILI). Além disso, a ausência de dispositivos biocompatíveis e a tecnologia crua da época, associada à falta de expertise dos diversos centros no uso da ECMO, pode ter contribuído para desfechos tão negativos.
Em 1986, o médico Luciano Gattinoni, publicou, também no JAMA, o estudo intitulado “Low frequency positive-pressure ventilation with extracorporeal CO2 removal in severe acute respiratory failure”.
Trata-se de um estudo observacional, feito com apenas 43 pacientes. Os critérios para inclusão eram os mesmos do estudo de Zapol:
- PaO2=50mmHg + FiO2=100% + peep>5cmH2O por 2 horas
- PaO2=50mmHg + FiO2>60% + peep>5cmH2O por 48 horas
O brilhantismo de Gattinoni reside no fato de ele ter submetido os pacientes a uma estratégia então denominada de “lung rest”. Ou seja, sob uma maior apreciação dos conceitos de VILI, os pacientes eram ventilados com uma PEEP que variava entre 15 e 25cmH2O, com uma driving pressure de 20cmH2O e com uma frequência respiratória de 3 a 5 irpm.
A remoção do gás carbônico era feita por uma membrana de troca (chamada de ECCO2R). Por sua vez, a oxigenação era garantida por meio do posicionamento de um cateter de O2 dentro do tubo orotraqueal do paciente. A instilação de oxigênio dentro das vias aéreas baixas permitia a oxigenação do sangue baseado nas próprias propriedades de troca dos alvéolos, sendo, portanto, mais fisiológica e, talvez, menos deletéria para o paciente. Veja a figura abaixo:
Dessa fez, os desfechos foram mais animadores. Dos 43 pacientes, 21 sobreviveram. Uma mortalidade comparativamente menor que a do estudo anterior (51 vs 90%). Evolutivamente, 31 pacientes apresentaram recuperação da função pulmonar, sempre nas primeiras 48 horas.
Esse estudo comprovou que o uso de uma membrana extracorpórea para a remoção de CO2 (ECCO2R) era segura. Não obstante, pairou a dúvida sobre o real motivo que levou à redução da mortalidade em relação o estudo de Zapol: seriam populações heterogêneas? Seria o uso da ECCO2R? Seria a estratégia de “lung rest”?
O último estudo da era clássica de ECMO foi publicado em 1994, por Alan Morris: “Randomized clinical trial of pressure controlled inverse ratio ventilation and extra-corporeal CO2 removal for adult respiratory distress syndrome”. Seu objetivo era responder às perguntas deixadas por Gattinoni.
Trata-se de um ensaio clínico randomizado e multicêntrico que alocou 40 pacientes em dois grupos distintos. No grupo controle, os pacientes seriam ventilados em modo APRV (Airway pressure release ventilation). No grupo intervenção, além da ventilação mecânica em APRV, os pacientes também receberiam a estratégia de “lung rest” associada à membrana de troca de CO2 (ECCO2R).
Talvez cause certa estranheza submetermos os pacientes ao modo ventilatório APRV. Mas esse fato ganha sentido quando contextualizamos que, em 1984, foi publicado um trial que testou o uso de APRV e observou melhora na oxigenação de pacientes ventilados com esse modo.
Voltando para o estudo de Morris, podemos citar os seguintes desfechos: a sobrevivência foi semelhante entre os dois grupos. Quarenta e dois por cento para o grupo controle e 33% para o grupo intervenção, sem significância estatística. Nota-se, no entanto, uma tendência à maior mortalidade no grupo que utilizou a ECCO2R, bem como mais complicações relacionadas a sangramento, possivelmente associadas à anticoagulação agressiva. Desse modo, o uso de ECCO2 foi desencorajado para a condução rotineira de casos de SDRA.
A comunidade científica, e, sobretudo, os defensores do uso de ECMO, ganharam um novo fôlego no ano de 2000, com o artigo pulicado pela médica Viveka Lindén. Um estudo observacional pequeno, com apenas 17 pacientes, mas de grande valor histórico.
Ele foi intitulado “High survival in adult patitents with acute respiratory distress syndrome treated by extracorporeal membrane coxigenation, minimal sedation and pressure supported ventilation” e resgatou o uso não somente da membrana de troca de CO2, mas, sim, da ECMO como um todo, com pacientes recebendo suporte pulmonar (ECMO veno-venosa) ou suporte cardio-pulmonar (ECMO veno-arterial).
Essencialmente, os 17 paciente com hipoxemia definida como relação PaO2/FiO2 < 60, em uso de FiO2 > 90% e irresponsivos à posição prona, uso de oxido nítrico ou com hipercapnia persistente, eram submetidos à canulação de ECMO, traqueostomia precoce e estratégia pulmonar protocolar (FiO2=40%, Pressão de pico=25 cmH2O, PEEP entre 5 e 10cmH2O).
Desses 17 pacientes, 13 sobreviveram. Isso significou uma sobrevivência de 76%. O tempo médio de uso de ECMO foi de 14.6 dias. Complicações relacionadas ao procedimento, como hemopericárdio, derrame pleural e sangramento não foram fatais. Dos três óbitos, um ocorreu por sangramento intracraniano e dois, por acidentes vasculares isquêmicos.
Como proposta, foi aventado que o uso de ECMO poderia atuar como ponte para que o paciente possa ser ventilado com menores volumes correntes a fim de se evitar uma ventilação iatrogênica. Além de apontar para a comunidade científica um possível benefício de modos espontâneos de ventilação mecânica para pacientes com SDRA.
Curiosamente, o estudo de Viveka Lindén foi publicado pouco tempo depois do estudo ARMA e, nele, encontramos a seguinte citação:
Um dos mais conhecidos estudos da era moderna de ECMO foi o CESAR trial, publicado por Giles Peek, no Lancet, em 2009. Nesse estudo multicêntrico e pragmático, 180 pacientes com insuficiência respiratória potencialmente reversível e que desenvolveram acidose com pH<7.20, e escore de Murray ≥ 3**, foram randomizados para dois grupos. Um deles, receberia suporte ventilatório, com uma estratégia protetora de ventilação mecânica: volume corrente de 4 a 8mL/Kg e pressão de platô abaixo de 30cmH2O. O outro, seria transferido para o Hospital de Glenfield, um centro especializado em ECMO no reino unido. Lá, os pacientes receberiam uma estratégia protetora de ventilação mecânica por 12 horas. Caso se mantivessem refratários, eles seriam submetidos a canulação de ECMO, veno-venosa ou veno-arterial.
** Apenas para ilustar, o escore e Murray para ARDS varia de 0 a 4, e tem como variáveis presença de infiltrado em Rx de tórax, relação PaO2/FiO2, PEEP e complacência pulmonar. Escore de 3 é considerado grave e indica a transferência do paciente para um centro especializado em ECMO.
O objetivo do estudo era tentar comprovar a melhora da sobrevida e da funcionalidade dos paciente em 6 meses. A funcionalidade seria avaliada por dois aspectos: se o paciente não estivesse restrito ao leito e se o paciente tivesse a capacidade de se tomar banho ou de se vestir sozinho.
Dos 90 pacientes que estavam no grupo de ventilação mecânica, apenas 70% receberam de fato a estratégia proterora que era recomentada pelo protocolo do estudo. E dos outros 90 pacientes que estavam no grupo de potencial canulação de ECMO, 75% receberam essa intervenção.
O resultado foi o aumento da sobrevivência em seis meses e uma melhora da funcionalidade, a favor do grupo de instalação de ECMO.
Colocando em números, 63% dos pacientes do grupo ECMO sobreviveram em seis meses, contra 51% dos pacientes do grupo controle, risco relativo de 0.69, com significância estatística. Além disso, 33% dos pacientesdo grupo intervenção não apresentavam problemas de mobilidade e 47% não tinham problemas com o auto-cuidado. Desfechos mais favoráveis que os obtidos no grupo controle. Veja abaixo:
Não obstante, esse resultado é merecedor de algum ceticismo e a principal crítica feita ao estudo é que nem todos os pacientes do grupo de ventilação mecânica receberam de fato uma ventilação mecânica protetora. A comparação entre os grupos torna-se, portanto, desproporcional e o resultado talvez possa ser atribuído ao cuidado diferenciado recebido pelos pacientes durante a internação no Hospital de Glenfield.
E, por fim, chegamos no mais atual e instigante estudo sobre ECMO, o EOLIA. Intitulado “Extracorporeal membrane oxigenation for severe acute respiratory distress syndrome”, publicado no New England Journal of Medicine, em maio de 2018, por A. Combes. Esse ensaio clínico, multicêntrico e internacional, randomizou 249 pacientes para receberem ou uma estratégia estrita de ventilação mecânica protetora, ou , então, canulação de ECMO veno-venosa associada a uma ventilação ultraprotetora.
Inicialmente os pacientes eram ventilados com uma estratégia protetora de ventilação mecânica (FR=35, Vti=6ml/Kg, Pplatô<32cmH2O, PEEP≥10cmH2O). Caso eles permanecessem com SDRA grave, por pelo menos um dos critérios abaixos, seriam randomizados para um dos grupos.
- PaO2/FiO2<50 por 3 horas
- PaO2/FiO2<80 por 6 horas
- pH<7,25 com PaCO2≥60mmHG por 6 horas
Dessa forma, dos 249 pacientes iniciais, 125 foram alocados no grupo de suporte ventilatório. A partir desse momento, a estratégia de ventilação mecânica era mais rigorosa, marcada por volume corrente igual a 6ml/Kg, pressão de platô até 30cmH2O, PEEP titulada com a mesma estratégia do EXPRESS trial, sendo ainda permitido o uso de recrutamento alveolar, posição prona e uso de óxido nítrico inalatório.
Além disso, caso o paciente estivesse nesse grupo e evoluisse com hipoxemia refratária (saturação < 80% por mais de 6 horas), ele poderia ser realocado no grupo intervenção. Em outras palavras, ele poderia deixar o protocolo do grupo controle e receber ECMO, mesmo que de maneira tardia.
No outro braço do estudo, foram alocados os 124 pacientes restantes, que receberiam canulação de ECMO veno-venosa e ventilação mecânica ultra-protetora, mercada por ventilação em modo VCV ou APRV, pressão de platô<24cmH2O, PEEP≥10cmH2O, FR=10 a 30irpm.
Infelizmente, em uma análise interina, o estudo teve que ser interrompido precocemente por futilidade. Em outras palavras, quando 75% da amostra prevista havia sido randomizada, os pesquisadores decidiram interromper o estudo pois ele, a princípio, não seria capaz de comprovar qualquer diferença de desfecho entre os dois grupos.
Não obstante, houve uma tendência à redução da mortalidade, com 35% no grupo ECMO vs 46% no tratamento convencional. O risco relativo foi de 0.76, com o intervalo de confiança variando de 0.55 a 1.04, ou seja, beirando a a significância estatística.
Além disso, 35 pacientes do grupo controle acabaram por sofrer crossover para o grupo intervenção e tiveram canulação de ECMO tardia. Desse 35 pacientes, 20 faleceram e, talvez, possam ter enviesado os resultados.
Os autores do EOLIA são dignos de notoriedade, dentre outros, por terem se mantido fiéis ao desenho inicial do estudo. Além disso, eles nos proporcionaram o que há de mais belo na litetratura científica: o anseio pela verdade. E se o estudo tivesse randomizado mais pacientes? E se não fosse permitido o crossover? Se a canulação de ECMO tivesse sido mais precoce nesses 35 pacientes que foram realocados? Teríamos resultados diferentes?
Apenas teremos as respostas com outros estudos. Mas isso não é fácil de fazer, dado ao reduzido número de centros considerados especializados em ECMO.
Após essa jornada pelos principais artigos científicos sobre ECMO, fica claro que os benefícios de seu uso ainda são duvidosos. Isso não significa que a membrana de oxigenação extra-corpórea não possa ser utilizada. Ela corresponde a uma terapia de resgate e deve ser aceita, compreendida e dominada pelos diversos profissionais que atuam em UTI. Vez ou outra, seremos confrontados com algum paciente com hipoxemia refratária ou acidose respiratória e que ficaremos inclinados a indicar ECMO. Ela seria a ponte para ganharmos tempo até que o processo inflamatório pulmonar se esfrie. Especialmente para pacientes jovens, com poucas comorbidades e com causas reversíveis de SDRA.
Com esses três textos sobre ECMO, não temos a pretenção de formar profissionais habilitados, mas, sim, informar sobres os princípios de funcionamento, monitorização e níveis de evidência que guiam a indicação desse tipo de suporte extracorpóreo. Esse é o primeiro passso para uma nova era dentro das UTIs.
Referências:
1.Extracorporeal Life Support for Adults With Respiratory Failure and Related Indications A Review, Daniel Brodie, MD; Arthur S. Slutsky, MD; Alain Combes, MD, PhD, JAMA. 2019;322(6):557-568, August 13, 2019 Volume 322, Number 6
2.ECMO Extracorporeal Life Support in Adults, Fabio Sangalli, Nicolò Patroniti, Antonio Pesenti, Springer Milan Heidelberg New York Dordrecht London, 2014
3.Prolonged Extracorporeal Oxigenation For Acute Post Traumatic Respirtory Failure (Shock-Lung Syndrome), Use of the Bramson Machine Lung, J. Donald Hill, The New Enagland Journal of Medicine, volume 286, number 12, March, 23, 1972
4.Extracorporeal Membrane Oxygenation in Severe Acute espiratory Failure A Randomized Prospective Study, Warren M. Zapol, JAMA 242:2193-2196, 197
5.Low-Frequency Positive-Pressure Ventilation With Extracorporeal CO2 Removal in Severe Acute Respiratory Failure, Luciano Gattinoni, MD; JAMA 1986;256:881-886
6.Randomized Clinical Trial of Pressure-controlled Inverse Ratio Ventilation and Extracorporeal CO2 Removal for Adult Respiratory Distress Syndrome ALAN H. MORRIS, Am J Respir Crit Care Med Vol 149. pp 295-305, 1994
7.High Survival in Adult Patients With Acute Respiratory Distress Syndrome Treated By Extracorporeal Membrane Oxygenation, Minimal Sedation, and Pressure Suported Ventilation, Viveka Lindèn, Intensive Care Medicine, 2000, 26: 1630 – 1637
8.Effi cacy and economic assessment of conventional ventilatory support versus extracorporeal membrane oxygenation for severe adult respiratory failure (CESAR): a multicentre randomised controlled trial, Giles J Peek, The Lancet, Vol 374 October 17, 2009
9.Extracorporeal Membrane Oxygenation for Severe Acute Respiratory Distress Syndrome, A. Combes, The New England Journal of Medicine, May 24, 2018 vol. 378 no. 21
https://emblog.mayo.edu/2017/04/10/ecmo-rounds-crash-course/
11.Lower tidal volume strategy (~3 ml/kg) combined with extracorporeal CO2 removal versus ‘conventional’ protective ventilation (6 ml/kg) in severe ARDS, Thomas Bein, Intensive Care Med (2013) 39:847–85