Como parte da rotina assistencial de uma UTI, diariamente são indicados e realizados exames de imagem que se utilizam de contraste venoso. Como exemplos mais recorrentes temos: tomografia computadorizada, cateterismo e angiografia. Concomitante à necessidade do uso do contraste venoso ou arterial, vem à mente de médicos e enfermeiros intensivistas a possibilidade da piora da função renal, no que chamamos de lesão renal aguda associada ao contraste (LRAAC). Como medida protetora para os rins, quase que de modo automático, diversos médicos prescrevem hidratação venosa.
Como o limite entre panaceia e boa prática médica pode se perder com a rotina, as próximas linhas são destinadas a uma revisão sobre o assunto. Quais as definições de lesão renal induzida por contraste? Qual sua relevância clínica? A hidratação venosa ajuda a prevenir tal entidade? Se sim, qual fluido usar? Devo proceder à infusão de n-acetil-cisteína? E de bicarbonato? Há diferença quando se utilizam contraste venoso ou arterial?
Visão Geral, Fisiopatologia e Fatores de Risco
Os primeiros relatos de disfunção renal secundária ao uso de contraste datam da década de 1950, em séries de casos que se utilizavam de contraste venoso a fim de realização de pielografia. Ao longo dos anos, os contrastes iodados passaram por diversas modificações estruturais e o reconhecimento de fatores de risco potencialmente implicados na piora da função renal permitiram medidas preventivas que pudessem efetivamente reduzir a incidência dessa entidade.
Alguns estudos têm sugerido que a diagnóstico de LRAAC pode ser superestimado. Essa informação é importante considerando que alguns procedimentos angiográficos deixam de ser realizados em pacientes com doença renal crônica, com a suposta premissa de estarmos poupando os rins do paciente.
Os agentes contrastados podem lesar diretamente as células tubulares renais, levando à perda da polaridade celular e à apoptose. Essa desorganização cito-arquitetural do néfron faz com que maior quantidade de sódio deixe de ser reabsorvida pelos túbulos proximais e chegue aos túbulos distais. Por mecanismo de feed-back, ocorre vasocontrição da artéria renal. Esse fenômeno, por sua vez, causa isquemia da já mal perfundida medula renal, podendo levar à necrose de papila. Além disso, há o aumento da viscosidade sanguínea e do fluido tubular, a formação de microtrombos e o estímulo à liberação de renina-angiotensina associado a menor produção de óxido nítrico e de prostaglandina.
Historicamente, o declínio da função renal dentro de 2 a 5 dias do uso intravascular de contraste iodado é definido como lesão renal associada ao contraste (LRAAC). A função renal é mensurada pela dosagem sérica de creatinina, que deve sofrer uma elevação de pelo menos 0.5mg/dL ou incremento de pelo menos 25% do seu valor basal. De acordo com a força-tarefa KDIGO (The Kidney Disease Improving Global Outcomes), a LRAAC é definida por elevação da creatinina sérica em pelo menos 1.5 vezes em relação ao valor de base em até 7 dias da infusão do meio de contraste, ou a elevação da creatinina em 0.3mg/dL em até 48 horas, ou um débito urinário de menos de 0.5mL/Kg/h por 6 horas após a exposição ao meio de contraste. Atualmente, o termo “lesão renal induzida por contraste” está em desuso e o mais correto seria utilizar “lesão renal associada ao contraste”.
O principal fator de risco para o desenvolvimento de LRAAC é a preexistência de doença renal crônica. Quanto menor a taxa de filtração glomerular, maior a possibilidade de lesão renal. Muito embora o Diabetes Mellitus seja citado como um fator de risco, a coexistência dessa condição sem disfunção renal não se correlaciona com LRAAC. O uso de contraste de alta osmolaridade, bem como o volume infundido também são fatores de risco. Dessa forma, o uso de meios de contraste de média e baixa osmolaridade, em volumes menores que 350ml (ou 4ml/Kg) devem ser preferidos. Cumpre-se lembrar que a repetição do exame contrastado, com menos de 72 horas entre o primeiro e o segundo, se correlaciona com piores desfechos para os rins. Por fim, o tipo de procedimento realizado também tem peso na LRAAC. Tradicionalmente, os procedimentos de intervenção arterial como, por exemplo, a intervenção coronariana percutânea (cineangiocoronariografia) oferece mais riscos quando comparados aos de tomografia com o uso de contraste venoso.
O que importa na prática?
Diversos estudos demonstraram que a LRAAC se correlaciona ao aumento da mortalidade, além do aumento da velocidade de declínio funcional renal. No entanto, a maior parte desses estudos é meramente observacional e as análises são apenas associativas. Talvez a piora da função renal seja muito mais um indicador de piores desfechos, do que a causa real desses piores desfechos.
Uma meta-análise feita por Coca et al. demonstrou que intervenções que supostamente levariam à nefroproteção (como hidratação venosa, alvos pressóricos mais elevados e o não uso de medicações nefrotóxicas), não se traduziram em redução da mortalidade ou mesmo do desenvolvimento de doença renal crônica. Até o momento, não existem estudos contundentes que comprovem que a prevenção de LRAAC levem a melhores desfechos em relação à mortalidade. Dessa forma, a maior parte dos guidelines que orientam a prática clínica encorajam o uso de contraste intravascular em pacientes com doença renal moderada.
Uma meta-análise feita por McDonald em 2013, comparou a realização de tomografia computadorizada com e sem o uso de contraste intravenoso em relação ao desenvolvimento de lesão renal aguda. Dos quase 26.000 pacientes, presentes em 13 estudos, não houve diferença estatística entre os grupos em relação à piora da função renal e tampouco, em relação à necessidade de hemodiálise e à mortalidade. Achados semelhantes foram encontrados na meta-análise de Brinjinkji, de 2017, que comparou a realização de tomografias computadorizadas com e sem contraste em pacientes em contexto de acidente vascular cerebral (AVC).
Esses dados não devem ser interpretados de modo a causar uma banalização do uso de contraste iodado. A mensagem que deve ficar é que, com os critérios de classificação atuais, a LRAAC é super-diagnosticada e os casos de disfunção renal importante e que têm relevância clínica são raros. Apenas para se ter uma ideia dessa dimensão, em 2008 foi publicado um estudo de coorte pelo médico e pesquisador Weisbord, que demonstrou que 1.2% dos pacientes que eram submetidos ao procedimento de cateterismo cardíaco (cineangiocoronariografia) desenvolviam aumento da creatinina em 50% do valor de base. Além disso, nenhum paciente arrolado no estudo apresentou elevação de 100% em relação ao valor de base. No estudo de Mc. Donald, já citado na atual revisão, somente 0.3% dos pacientes que utilizaram contraste venoso necessitaram de hemodiálise.
Estratégias de prevenção da lesão renal associada ao contraste
Expansão volêmica
O Colégio Americano de Radiologia recomenda que a hidratação venosa para fim de nefroproteção seja feita com soro fisiológico 0.9% (SF 0.9%), na velocidade de infusão de 100mL/h, de 6 a 12 horas antes e 4 a 12 horas após a administração do contraste venoso. Para a sociedade europeia de cardiologia, a hidratação venosa deve ser feita também com SF 0.9% na velocidade de 1 a 1.5ml/Kg/h, iniciada 12 horas antes do procedimento e mantida até 24 horas após o procedimento no qual é utilizado contraste arterial. Para procedimentos de emergência, Gupta et al. propuseram uma expansão volêmica (SF 0.9%) a 3ml/Kg/h, iniciada uma hora antes e mantido por 6 horas após o procedimento.
O estudo POSEIDON, publicado em 2014, comparou diferentes estratégias de hidratação venosa, com base na pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (VE). Nele, todos os pacientes receberam soro fisiológico na velocidade de 3mL/Kg/h, uma hora antes de se submeterem a coronariografia. No grupo controle, a velocidade de infusão do fluido foi mantida em 1.5ml/Kg/h por quatro horas após o procedimento. Já no grupo intervenção, a velocidade de infusão era mantida a 5mL/Kg/h, ou a 3ml/Kg/hora, ou a 1.5mL/Kg/h tendo como meta manter uma pressão diastólica final de VE menor que 13mmHg, entre 13 e 18mmHg e acima de 18mmHg, respectivamente. O resultado foi uma menor incidência de lesão renal aguda no grupo guiado por meta pressórica de VE (6.7% vs. 16.3%; risco relativo, 0.41; 95% CI, 0.22 – 0.79; P = 0.005). Via de regra, o grupo intervenção recebeu maior volume de cristaloide, com uma baixa ocorrência e congestão pulmonar.
Em fevereiro de 2018, foi publicado o estudo PRESERVE. Nele, objetivou-se comparar a hidratação venosa feita com solução de bicarbonato isotônica (1.26%), com a feita com SF0.9%. O desfecho observado era composto por mortalidade em 90 dias, necessidade de diálise e deterioração persistente da função renal. O estudo foi interrompido precocemente por futilidade, tendo falhado em demonstrar qualquer diferença estatisticamente significativa entre os grupos.
N-acetil-cisteína
Existem diversos estudos já publicados, com o objetivo de comprovar algum tipo de benefício do uso de n-acetil-cisteína para a prevenção da LRAAC. No entanto, os resultados são altamente divergentes e não justificam tal prática de modo rotineiro. O próprio estudo PRESERVE randomizou os pacientes para o recebimento de 1200mg de n-acetil-cisteína duas vezes por dia, por cinco dias, iniciando no dia da infusão do contraste, com resultados frustros.
Estatinas
A hipótese de que estatinas reduzem o risco de LRAAC baseia-se no fato de que essas medicações possuem propriedades anti-inflamatórias e anti-oxidantes. O estudo PROMISS falhou em demonstrar diferença significativa entre o uso de sinvastatina ou de placebo em relação à elevação do valor de creatinina sérica após 48 horas da infusão de contraste iodado em pacientes com doença renal crônica estabelecida. No entanto, o estudo PRATO-ACS demonstrou uma redução significativa da incidência de disfunção renal aguda e de eventos cardiovasculares e renais em 30 dias após cateterismo coronariano, com o recebimento de altas doses de rosuvastatina. Dado essa divergência, mais estudos são necessários para elucidar de modo contundente o papel das estatinas para a prevenção de LRAAC.
Conclusão
Fica claro, então, que a lesão renal induzida por contraste é uma entidade recorrente na prática da terapia intensiva. No entanto, a maioria dos casos não apresenta repercussão clínica. Atenção especial deve ser dada aos pacientes que já possuem algum tipo de disfunção renal (crônica ou aguda) no momento da infusão do contraste. Faz parte de uma boa prática médica a descontinuação temporária de medicações com potencial efeito nefrotóxico, a bem dizer: anti-inflamatórios não-esteroidais, inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA), bloqueadores do receptor de angiotensinogênio (BRA) e diuréticos.
O contraste deve ser de baixa osmolaridade ou iso-osmolar, no menor volume necessário. Para casos de contraste venoso, como angiotomografias por exemplo, uma boa estratégia é a administração de soro fisiológico na velocidade de 100ml/h, 6 horas antes e 4 horas após o procedimento. No caso de contraste arterial, como nas coronariografias, uma estratégia mais permissiva à expansão volêmica pode ser adotada: 1.5ml/Kg/h 12 horas antes e 12 horas após a intervenção. Não há evidências que justifiquem o uso de soluções bicarbonatadas nem de n-acetil-cisteína. Para pacientes já em uso de estatinas é aconselhável mantê-las.
Referências:
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