Intercorrências Oncológicas em UTI I: Síndrome de Lise Tumoral

A taxa de incidência de câncer no Brasil aumentou quando comparamos os anos de 1997 e 2012, conforme dados do DATASUS. Para a população masculina, passamos de 117 casos para cada 100.000 habitantes para 195. Para a população feminina, a incidência foi de 121 para 184 novos casos para cada 100.000 habitantes.

Dimensionando em números absolutos, só no ano de 2020, tivemos cerca de 2.26 milhões de novos diagnósticos de câncer de mama e 2.21 milhões novos casos de câncer de pulmão no mundo. Somando esses aos números de novos casos de câncer de intestino, próstata, pele (não melanoma) e estômago, o número chega a 10.1 milhões.

Em concordância com aumento da incidência de neoplasias, o tratamento oncológico está na vanguarda das inovações farmacológicas. Estratégias de radioterapia, quimioterapia, terapia alvo-dirigida e hormonioterapia somam-se ao desenvolvimento de novas técnicas cirúrgicas e ao seguimento multiprofissional, projetando um cenário de sobrevida para o paciente muito diferente do que era há 15 anos atrás.

Dessa forma, admissões de pacientes oncológicos em unidades de terapia intensiva têm se tornado cada vez mais frequentes. Não faz parte do escopo de conhecimento do médico intensivista o domínio de detalhes sobre regimes de quimioterapia. No entanto, o conhecimento das principais intercorrências hematológicas e oncológicas é necessário para que a condução de um caso se faça de modo assertivo e harmonioso em relação às equipes assistentes.

Essa é a primeira de uma série de três publicações sobre emergências oncológicas. Ao longo das próximas linhas, abordaremos os seguintes temas:

Síndrome de lise tumoral, neutropenia febril, síndrome de hiperviscosidade e leucostase e hipercalcemia da malignidade.

Síndrome de lise tumoral

A síndrome de lise tumoral é uma entidade oncometabólica que leva à desregulação eletrolítica a partir do processo de morte celular acelerada e que pode ocasionar disfunções orgânicas ameaçadoras à vida, sobretudo renal, cardíaca e neurológica. O processo de morte celular pode ser decorrente do próprio tratamento da doença neoplásica, causando lise e extravasamento da matriz intracelular para o extra-celular. Outro mecanismo seria por meio da apoptose; ou seja, um mecanismo de morte celular programado, mas que em cenário de alto turn-over, toma proporções importantes.

O potássio é o principal íon intracelular. Desse modo, a lise de células tumorais leva ao seu extravasamento e ao aumento de sua concentração sérica. A hipercalemia, por sua vez, pode ocasionar arritmias cardíacas.

Outro componente da síndrome é a hiperuricemia. O ácido úrico é um produto de degradação de ácidos nucleicos (adenina e guanina), anteriormente contidos no núcleo celular. O aumento de sua concentração sérica contribui para o desenvolvimento de disfunção renal.

Como se não bastasse, o fosfato também ganha o meio extracelular e ele tem a propriedade de se ligar ao cálcio. Desse modo, temos dois efeitos negativos. O primeiro é a possibilidade de formação de cristais de fosfato de cálcio que se depositam nos túbulos renais, contribuindo sobremaneira para a disfunção desse órgão. O segundo é que a redução da cálcio iônico é responsável por alterações neurológicas; em um espectro que varia de sonolência até status epilepticus.

Os critérios diagnósticos são baseados na classificação de Cairo e Bishop de 2004. De acordo com ela, a síndrome de lise tumoral pode se apresentar de modo assintomático e cujo diagnóstico é dependente

de exames laboratoriais, ou de modo sintomático, cuja gravidade e prognóstico são classificados em cinco graus a depender da apresentação clínica.

Os fatores de risco para o desenvolvimento de síndrome de lise tumoral são: idade avançada, desidratação, uso prévio de medicações nefrotóxicas e o tipo de neoplasia.

As neoplasias mais comumente implicadas são os tumores hematológicos, sobretudo aqueles com leucocitose acima de 100.000 células/mm3 ou com a dosagem sérica de lactato desidrogenase acima de duas vezes o limite superior da normalidade. Como exemplos de tumores de alto risco, citamos: leucemia mieloide aguda, leucemia linfoide aguda, linfoma difuso de grandes células B, Linfoma de Brukitt, Doença de Bulky. Apenas para exemplificar, os tumores considerados como de baixo risco são: linfomas indolentes, leucemias crônicas, mieloma múltiplo e cânceres sólidos.

Para os pacientes de alto risco e que se submeteração a algum tipo de tratamento citorredutor, é importante proceder à profilaxia, através de hidratação venosa, suspensão de medicações nefrotóxicas e, no caso de desbalanço hídrico, uso de diuréticos de alça (furosemida).

Além disso, pode-se lançar mão de duas medicações: o alopurinol e a raburicase. O primeiro é um inibidor da enzima xantina-oxidase e tem a propriedade de reduzir a produção de ácido úrico. O segundo é uma enzima que degrada o ácido úrico em alantoína, um metabólito hidrossolúvel e mais facilmente excretável pelos rins.

Em contexto de UTI, muitas vezes tempos que lidar com as complicações da síndrome. A hipercalemia pode ser controlada a partir de medicações que espoliam o íon, como furosemida e poliestirenossulfonato de cálcio (sorcal). Medidas que causam o influxo de cálcio para o intracelular,  como glicoinsulino terapia e o uso de beta-2 agonista de curta duração inalatório também podem auxilar. A administração de bicarbonato de sódio e de gluconato de cálcio podem ser utilizados com a ressalva do risco de aumento da depoisição de cristais de ácido úrico nos rins.

Para a disfunção renal, podemos lançar mão da terapia renal substitutiva. No caso de hiperfosfatemia, recomenda-se a administração do quelante sevelamer.

Por fim, em um espectro mais grave, com o comprometimento do sistema nervoso central, as convulsões podem ser tratadas com drogas anti-epilepticas, como midazolam. Mas crises reentrantes, ou que cursam com a não recuperação do nível de consciência, devem ser abordadas agressivamente, com sedação e intubação orotraqueal. Diagnóstico diferencial a partir de tomografia computadorizada de crânio e eletroencefalograma também são preconizados.

 

Esse texto foi escrito conjuntamente por Blayner Brandão Oppenheimer, CREMESP189299, médico residente de Medicina Intensiva pela UNIFESP e plantonista do grupo PacienteGraveUTI, e Felipe Cavatoni, médico intensivista, preceptor do programa de Medicina Intensiva pela UNIFESP, Coordenador assistencial pelo grupo PacienteGraveUTI. 

 

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