Hipertensão abdominal e síndrome compartimental abdominal: highlights e insights

O abdome é uma região delimitada por estruturas musculares e, portanto, apresenta uma complacência limitada. Algumas condições como, por exemplo, o edema de alças intestinais, pode fazer com que haja um aumento da pressão intra-abdominal. Caso esse valor se situe acima de 12mmHg, de modo persistente, temos a chamada síndrome de hipertensão abdominal.

Em um contínuo, o aumento progressivo do valor da pressão intra-abdominal, pode levar à má perfusão dos órgãos contidos nessa cavidade, causando isquemia. Além disso, pode ocorrer a compressão extrínseca da veia cava inferior. Como consequência, temos a redução do retorno venoso para as câmaras direitas do coração e, portanto, a diminuição do débito cardíaco. Nesse momento, com a instalação da insuficiência circulatória aguda e hipoperfusão generalizada, há a progressão do quadro clínico com diversos graus de disfunção orgânica.

A bem dizer, quando o aumento da pressão intra-abdominal se associa a disfunções orgânicas, temos a chamada síndrome compartimental abdominal. Geralmente ela ocorre quando o valor da pressão intracavitária se localiza acima de 20mmHg.

Sua importância é muitas vezes negligenciada no contexto de terapia intensiva. O diagnóstico tardio pode acarretar em maior número de disfunções orgânicas e, portanto, em pior prognóstico. Além disso, nem sempre o exame físico é evidente, e o paciente pode se apresentar sem distensão abdominal. Talvez, as condições clínicas que indiretamente mais se associem à síndrome compartimental abdominal sejam uma disfunção respiratória, associada a elevada pressão de pico de vias aéreas durante a ventilação mecânica, redução do débito urinário e instabilidade hemodinâmica. Infelizmente, condições nada específicas em contexto de cuidado com o paciente grave.

Aventa-se que até 35% dos pacientes internados em UTI possam ter algum grau de hipertensão abdominal. Diversas causas podem levar ao aumento da pressão nesse compartimento: sangramento intraperitoneal, trauma, abscessos, massas, obstrução intestinal, balanço hídrico positivo, rigidez da musculatura abdominal.

Fatores de risco:

  • Diminuição da complacência abdominal
    • Cirurgia abdominal
    • Politrauma
    • Grande queimado
    • Posição prona
  • Incremento do conteúdo intraluminal
    • Gastroparesia, distensão gástrica
    • Íleo metabólico
    • Pseudo-obstrução colônica
    • Volvo intestinal
  • Incremento do conteúdo intra-abdominal
    • Pancreatite aguda
    • Distensão de alças intestinais
    • Coleção líquida intra-peritoneal
    • Abscesso intrabdominal
    • Tumores peritoneais ou retro-periteoneais
    • Laparoscopia com elevadas pressões de insuflação
    • Hepatopatia com ascite
    • Diálise peritoneal
  • Aumento da permeabilidade capilar
    • Acidose
    • Cirurgia de controle de danos
    • Hipotermia
    • Ressuscitação volêmica supra-ótima
    • politransfusão

Classificação:

  • Grau I: PIA=12 a 15mmHg
  • Grau II: PIA=16 a 20mmHg
  • Grau III: PIA=20 a 25mmHg
  • Grau IV: PIA>25mmHg

Características hemodinâmicas:

  • Redução do débito cardíaco
  • Aumento da resistência vascular sistêmica
  • Aumento da pressão venosa central, por redução do retorno venoso pela veia cava superior. Isso faz com que haja até mesmo um aumento da pressão intra-craniana e redução da perfusão cerebral.
  • Redução do débito urinário por hipoperfusão renal

Características ventilatórias

  • Redução com complacência pulmonar
  • Aumento da pressão de pico e da pressão de platô
  • Redução da relação PaO2/FiO2
  • Hipercapnia

O diagnóstico, tanto da hipertensão abdominal quanto da síndrome compartimental, somente será feito caso tenhamos um perfil mais sensível para sua suspeição. A melhor maneira de estabelecer o diagnóstico é por meio a aferição do valor da pressão intravesical, que indiretamente reflete a pressão intra-abdominal (PIA). A PIA deve ser sempre aferida em pacientes críticos com fatores de risco (por exemplo, em pós operatório de extensas cirurgias abdominais).

A medição deve ser feita utilizando-se uma sonda vesical de três vias, com o domus nivelado na intercessão da linha axilar média com a crista ilíaca, após a injeção de 25mL de solução fisiológica 0.9% estéril e ao final da expiração. Além disso, o paciente deve estar em decúbito dorsal a com a cabeceira do leito a zero grau e, de preferência, sedado. O valor, obtido em cmH2O deve ser, por fim, convertido em mmHg.

Valores entre 5 a 7mmHg são considerados normais em pacientes críticos. Aqueles entre 10 e 15mmHg são aceitáveis na população obesa e em contexto de pós operatório de cirurgias abdominais. Valores acima de 25mmHg são altamente sugestivos de síndrome compartimental. Valores entre 15 e 25mmHg, são duvidosos, e devem ser contextualizados com a clínica do paciente, bem como comparando-se o paciente evolutivamente no tempo.

Contraindicações para o uso da técnica de aferição da pressão transvesical incluem: trauma de bexiga, bexiga neurogênica, hiperplasia prostática benigna com estenose de uretra importante e hematoma pélvico.

O tratamento da hipertensão abdominal, com ou sem síndrome compartimental, divide-se em medidas cirúrgicas e não cirúrgicas. Como intervenções não cirúrgicas, temos: uso de bloqueadores neuromusculares em pacientes sedados para a redução da contração da musculatura abdominal, passagem de sonda nasogástrica e retal para a descompressão gasosa do estômago e do cólon, drenagem de conteúdo abdominal (caso exista, por exemplo, ascite ou abscesso) e estratégia de balanço hídrico negativo, quer seja com diurético-terapia, quer seja por meio de diálise.

Outras medidas adjuvantes como o estímulo à deambulação, a manutenção da evacuação diária, e o uso da tromboprofilaxia venosa devem ser mantidas.

O tratamento não medicamentoso pode evitar a progressão de um quadro de hipertensão abdominal para o de uma síndrome compartimental. No entanto, caso o manejo conservador seja infrutífero ou caso haja novas disfunções orgânicas implicadas ao cenário clínico, deve-se proceder à laparotomia descompressiva. Em pós operatório, o paciente deve permanecer em peritoneostomia.

A fáscia abdominal pode ser fechada dentro de 5 a 7 dias já com a redução do edema de alças intestinais. Nesse intervalo, espera-se que haja melhora das disfunções orgânicas caso elas sejam atribuíveis majoritariamente à hipertensão abdominal. Espera-se ainda melhora da mecânica ventilatória, incremento no débito cardíaco, desmame de drogas vasoativas e aumento do débito urinário.

O prognóstico da síndrome de hipertensão abdominal torna-se reservado a partir do seu potencial em aumentar o tempo de internação hospitalar, tempo de ventilação mecânica e piora de disfunções orgânicas, com maior necessidade de suporte extracorpóreo. Fatores de risco para maior mortalidade são: hiperlactatemia, procedimentos cirúrgicos de mais de duas horas de duração, desenvolvimento de hipertensão abdominal com menos de 48 da admissão na UTI.

Ressalta-se, por fim, que a condução de um caso de hipertensão abdominal, a fim de ser completo e efetivo, necessita de uma equipe multiprofissional coesa. Podemos citar o papel da fisioterapia na mobilização precoce dos pacientes de UTI, da equipe de fonoaudiologia e de nutrição em estimular o uso do trato gastrointestinal e promover a transição segura e precoce de uma dieta parenteral para a enteral, além da equipe de enfermagem, que deve ser treinada e encorajada a aferir a PIA em pacientes sob risco.

Quanto à área médica, se faz necessário a quebra de antigos mitos da terapia intensiva, como a manutenção dos pacientes profundamente sedados e por longos períodos, bem como a negligência de um balanço hídrico positivo em pacientes em fase de derressuscitação. A condução do caso deve ser feita de modo harmonioso entre as equipes médicas e grandes benefícios advêm de condutas alinhadas entres as equipe de Medicina Intensiva, Gastrocirurgia e Nefrologia.

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