Escassez de heparina: quem não tem cão, caça com gato!

O atual cenário imposto pela pandemia de coronavírus é marcado, eventualmente, pela carência de insumos. Sobretudo em serviços públicos, não é rara a situação em que temos que fazer certos ajustes de prescrição a fim de contornar a indisponibilidade de um ou outro medicamento.

No entanto, nas últimas semanas, diversas UTIs do Brasil e do mundo têm sido confrontadas com o potencial desabastecimento de heparina não fracionada. Dessa vez, a origem do problema não se encontra na pandemia, mas sim na escassez da matéria prima para sua produção.

Nas próximas linhas, iremos compreender um pouco melhor sobre a produção da heparina não fracionada, o que dizem os laboratórios fabricantes e quais as alternativas para mitigar o problema.

A purificação de heparina a partir de vísceras de animais domesticados é um processo industrial antigo, cujas receitas datam da década de 1920. Muito embora alternativas quimio-enzimáticas e biotecnológicas tenham sido publicadas na literatura científica, os tecidos animais ainda são o principal insumo para sua fabricação farmacológica.

Os primeiros protocolos de produção de heparina utilizavam fígado de bovinos e de caninos como fonte. Posteriormente, a preferência foi dada para pulmões de bovinos e de porcinos. No entanto, desde a descoberta de que a mucosa intestinal de porcinos era uma fonte muito mais isenta de resíduos biológicos e cuja produção de heparina exigia menos degradação comparada à de pulmões de bovinos, aliada à epidemia de encefalopatia espongiliforme bovina (mal da “vaca-louca”) nos anos de 1990, a produção de heparina de materiais bovinos reduziu drasticamente. Na verdade, a única matéria prima para a produção de heparina aprovada pelo FDA (Food and Drug Administration) é a mucosa de porcinos. Não obstante, diversos países, como Brasil, Argentina e Índia ainda permitem a extração de heparina de derivados bovinos. Antes da pandemia, a fim de atender às demandas de consumo mundial de heparina, era necessário o abate de 109 porcos por ano.

Associada a essa elevada demanda, em setembro de 2018, o vírus da peste suína africana (PSA) foi identificado em suínos de subsistência na China; país que tem o maior rebanho (428 milhões de cabeças), correspondendo a metade da população de suínos do mundo. A peste suína africana é uma doença altamente contagiosa e que não tem cura nem tratamento. Ela acomete suínos e javalis, mas não causa efeitos em humanos. O vírus da PSA foi identificado pela primeira vez na África, no início do século XX, e se estima que chegou à Europa em 1957 por meio de restos de alimentos servidos em aviões contendo produtos derivados de suínos contaminados com PSA. No Brasil, o vírus foi identificado em 1978 em suínos de subsistência, em Paracambi, no Rio de Janeiro. A PSA foi erradicada e o Brasil é considerado livre da doença desde 1984.

A PSA é causada por um vírus DNA pertencente à família Asfarviridae. Já foram identificados 24 genótipos diferentes desse vírus. A maioria é altamente virulenta, ocasionando taxas de mortalidade elevadas. O vírus da PSA tem o potencial de se disseminar rapidamente e ser extremamente resistente à inativação. A principal via de transmissão é pelo contato direto entre suínos infectados ou através da ingestão por esses animais de produtos de origem suína contaminados com o vírus (esta tem sido frequentemente a via pela qual o vírus se disseminou por longas distâncias). Outra via de transmissão, mas menos comum, com exceção de países na África, é por carrapatos, que atuam como vetor da doença.

Existem dois tipos de heparina disponíveis no mercado brasileiro: a heparina não fracionada e as heparinas de baixo peso molecular (dal­teparina, enoxaparina e nadroparina). A heparina não fracionada é produzida por três laboratórios: CRISTÁLIA, BLAU e EUROFARMA. Os primeiros produzem a heparina sódica suína, sob os nomes comerciais Hemofol e Hepamax S (5000U/mL, EV/IM, frasco-ampola com 5mL). O terceiro, a heparina sódica bovina, Heptar (5000U/mL, EV, Frasco-ampola com 5mL). Segundo os fabricantes, esses medicamentos correm risco de falta devido à escassez de matéria prima e aumento da demanda. Atualmente não há disponível no mercado, outros laboratórios que estejam produzindo o medicamento com mesmo princípio ativo (heparina não fracionada).

Frente a essa realidade, duas ações se fazem necessárias: o uso racional de heparina não fracionada e a procura de alternativas de outros tipos de heparina que possam ser utilizadas e que não estejam em falta no mercado. Essa segunda ação exige uma ponderação sobre os riscos e benefícios do uso de cada alternativa farmacológica, uma vez que pode haver implicações importantes na segurança para o paciente.

Cada instituição é responsável por criar seus protocolos e respaldar as condutas médicas juntamente com a equipe assistente. Não temos a pretensão de ditar condutas, mas tão somente a de sugerir algumas possibilidades de prescrição frente à ameaça de desabastecimento de heparina não fracionada. As próximas linhas devem ser analisadas, portanto, com ressalvas.

Pacientes em uso de heparina profilática

Para os pacientes com clearence de creatinina abaixo de 30ml/min, uma alternativa seria o uso de heparina de baixo peso molecular. Nesses casos cumpre-se dizer que não há opção 100% segura e respaldada na literatura. Tanto o fondaparinux, quanto a dalteparina e a enoxaparina, são antagonistas do fator X ativado e cuja eliminação é prolongada em pacientes com disfunção renal, já que a principal via de excreção das drogas é a urinária. Desse modo, sugerimos que seja feito ajuste de dose, com uso da metade da dose profilática. Quando disponível, pode ser feito uso de dosagem sérica de anti-Xa. É preconizada titulação da dose quando a concetração de anti-Xa seja maior que 0.4IU/mL.

O clearence de creatinina > 30ml/Kg já configura um perfil de segurança permissivo ao uso de heparina de baixo peso molecular e, portanto, não é necessário ajuste de dose.

Doses sugeridas para uso profilático (sem ajuste):

  • Dalteparina: 5,000 U 1 vez por dia
  • Enoxaparina: 40 mg OD or 30 mg 12/12 horas
  • Nadroparin: 2,850 U 1 vez por dia (cirurgia geral); 38 U/kg 1 vez por dia (cirurgias ortopédicas)

Pacientes com critérios para anticoagulação:

Para os pacientes com necessidade de anticoagulação, sugerimos que a heparina não fracionada seja reservada para aqueles em terapia renal substitutiva, instáveis e/ ou com indisponibilidade de uso trato gastrointestinal. Caso o paciente tenha clearence de creatinina < 30mL/Kg e não tenha necessidade de hemodiálise, pode-se considerar o uso de enoxaparina em metade da dose anticoagulante. Já para aqueles com um perfil de estabilidade hemodinâmica e sem exigência de diálise e cujo trato gastrointestinal esteja pérvio, deve-se considerar a anticoagulação via enteral, com o uso de warfarina. Sobre os novos anticoagulantes orais, a preferência recai sobre o apixabana, que apresenta um perfil de segurança maior no que tange às questões de sangramento, mas com a ressalve de que não recomenda-se sua administração via sonda nasoentérica.

Importante monitorizar clinica e laboratorialmente sinais de sangramento oculto ou exteriorizado. Casos de queda de hemoglobina com necessidade de hemotransfusão, melena, hematêmese, hematoma com repercussão hematimétrica, etc, devem levar à interrupção da medicação e à busca de alternativas de tromboprofilaxia, como o uso de compressor pneumático intermitente. Além disso, frisamos a importância de se buscar a etiologia do sangramento, quer seja por meio de endoscopia digestiva alta ou baixa para casos de hematêmese ou melena, quanto por meio de FAST (focused abdominal sonography in trauma) ou de tomografia computadorizada de abdome nos casos de sangramento abdominal ou retroperitoneal.

Resumindo, temos as seguintes sugestões:

Para casos de dose profilática:

  • ClCr>30ml/min: uso de 40mg de enoxaparina SC 24/24 horas
  • ClCr < 30ml/min: uso de 20mg de enoxaparina SC 24/24 horas (independente do paciente ser dialítico)

Para casos de dose de anticoagulação:

  • ClCr>30ml/min: uso de enoxaparina SC 12/12 horas conforme o peso do paciente
  • ClCr<30ml/min, sem terapia renal substitutiva: uso de enoxaprina SC 12/12 horas em metade da dose plena, conforme o peso do paciente
  • ClCr<30ml/min, com paciente em terapia renal substitutiva: uso de heparina não fracionada em bomba de infusão contínua e controle de TTPa de 6/6 horas
  • Para pacientes com via oral patente, sem uso de drogas vasoativas, sem necessidade de diálise, avaliar possibilidade de transição para anticoagulação oral.

Por fim, o bom médico faz o melhor que consegue, aonde estiver e com o que tem. A ameaça de desabastecimento de heparina é real e sem prazo para se resolver. Mais uma vez, as sugestões acima devem ser avaliadas com cautela e apenas refletem a necessidade de adaptação frente a um cenário atipico.

 

Referências

From Farm to Pharma: An Overview of Industrial, Heparin Manufacturing Methods, Jan-Ytzen van der Meer *, Edwin Kellenbach and Leendert J. van den Bos, molecules21 June 2017

https://www.embrapa.br/suinos-e-aves/psa#:~:text=A%20peste%20su%C3%ADna%20africana%20(PSA,e%20cruzamentos%20com%20su%C3%ADnos%20dom%C3%A9sticos).

embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/43987217/peste-suina-africana-desafio-do-brasil-e-manter-animais-livres-da-doenca-letal-e-sem-cura-mas-que-nao-afeta-humanos

Boletim ISMP, instituto para práticas seguras no uso de medicamentos, outubro 2013, volume 2, número 5, ISSN 2317-2312.

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