Diarreia na UTI! O que fazer?

Diarreia é uma das principais intercorrências que acometem pacientes internados em unidade de terapia intensiva. Estima-se que cerca 15 a 37% dos pacientes desenvolvam, em algum momento da internação, quadro de evacuações volumosas, recorrentes ou com fezes “não-formadas”.

Interessante notar que a diarreia não costuma vir sozinha. Ela vem junto a uma série de sugestões: “não vai reduzir a dieta?”, “não vai pesquisar clostridium?”, “não vai  prescrever carbonato de cálcio?”. Nesse emaranhado de opções, ficamos perdidos na obscura fronteira do que é boa prática médica e o que é panaceia.

Então, venha com o time da PacienteGraveUTI para uma revisão sobre esse tema recorrente e tão pouco comentado!

Existem diversas definições de diarreia na literatura. Mas a mais factível de ser aplicada na rotina médica se enquadra em uma das três opções abaixo:

  • Atividade intestinal que leva a 4 ou mais evacuações por dia, independente da consistência das fezes, ou
  • Três ou mais evacuações de fezes não formadas por dia, por dois dias consecutivos, ou
  • Um volume de evacuação maior que 300mL por dia por dois dias consecutivos

A diarreia pode causar desconforto ao paciente, sendo causa de agitação, lesão química de sua pele, além de consumir um tempo importante da equipe de enfermagem.  Há o risco potencial  de desidratação, de distúrbios hidroeletrolíticos e de contaminação fecal dos dispositivos invasivos inseridos em sítios femorais. Em uma revisão sistemática feita em 2019 por Taito e colaborabores, concluiu-se que a diarreia associa-se a maior risco de mortalidade e aumenta o tempo de internação em cerca de 8 dias, para pacientes em contexto de UTI.

Muitas vezes, culpamos a dieta enteral pelo quadro diarreico. No entanto, existem diversos outros fatores potencialmente implicados, como medicações (particularmente  laxativos), ausência de fibras na dieta e alterações na flora intestinal. Outras causas menos comuns de diarreia são impactação fecal (com diarreia paradoxal), isquemia mesentérica, fístula intestinal, processos neoplásicos, insuficiência pancreática, gastrinoma e infecção por Clostridium difficile.

Como a etiologia da diarreia pode ser multifatorial, uma abordagem escalonada seguindo os seguintes passos tem boas chances de sucesso:

  1. Suspender medidas laxativas, sobretudo lactulose, sorbitol e bisacodil.
  2. Realizar exame físico, incluindo toque retal a fim de se excluir impactação fecal e sangramento oculto
  3. Manter a dieta enteral e discutir com a equipe de nutrição a possibilidade de se associar fibras ou mesmo modificar a formulação da dieta para uma que não seja hiperosmolar.
  4. Para aqueles que cursam com leucocitose > 15.000/mL, distensão abdominal e disfunções orgânicas, pesquisar infecção por Clostridium dificcile e iniciar o tratamento empiricamente.
  5. Avaliar necessidade de exame de imagem (tomografia contrastada de abdome e pelve, colonoscopia)

Existem diversos medicamentos que podem levar à diarreia. O mecanismo de ação de cada um deles não é completamente estabecido. Além disso, alguns deles trazem em sua formulação o excipiente sorbitol, que, por si só, já tem uma função laxativa.  Como medicações de uso rotineiro, que podem levar à diarreia, citamos:

  • Teofilina
  • Antiácidos minerais com magnésio, cimetidina, famotidina
  • Agentes anti-neoplásicos
  • Antiarrítmicos: digoxina, procainamida
  • Anti-hipertensivos: beta-bloqueadores, inibidores do receptor de angiotensina, hidralazina
  • Lovastatina, genfibrosil
  • Hormônios tireoidianos

A administração de antibióticos relaciona-se tanto ao desenvolvimento da infecção por Clostridium difficile quanto ao desenvolvimento de diarreia de causa não infecciosa. Essa última pode ser explicada por diversos fatores, como desbalanço da flora bacteriana normal, com redução da quantidade de bactérias fermentadoras de carboidratos,  além de estímulo direto da droga sobre a motilidade intestinal.

Uma revisão minuciosa das medicações administradas é um passo essencial para o manejo da diarreia em contexto de terapia intensiva.

Para aventarmos a possibilidade de uma diarreia osmótica causada pela dieta enteral,  o ideal seria realizarmos o gap osmolar fecal. Sua fórmula é a seguinte: [290 – 2 (Na+ fecal + K+ fecal)]. Um valor acima de 100 é altamente sugestivo. No entanto, esse exame é poucas vezes realizado na prática e o que fazemos é intervir na dieta de modo empírico, evitando-se ao máximo a sua interrupção.

Em 2007, Suzie Ferret promoveu uma revisão em artigos científicos visando encontrar as melhores evidências a fim de se estabelecer o manejo inicial para pacientes com diarreia de possível etiologia osmótica. Dentre suas recomendações, temos:

  • Uso de sistemas de nutrição enteral fechados a fim de se reduzir o risco de contaminação da dieta.
  • Dietas poliméricas (com nutrientes não hidrolisados) devem ser a escolha padrão, considerando a baixa evidência de melhor tolerância com o uso de dietas oligoméricas.
  • Fibras devem ser incluídas com o objetivo de promover um funcionamento normal do intestino.
  • A interrupção da nutrição enteral com o objetivo de se tratar a diarreia deve ser desencorajado, considerando que essa é raramente a causa do problema.
  • Uma revisão da formula da dieta enteral ofertada para o paciente é interessante, considerando que formulações hiperosmolares podem ser causa de mal absorção.

Com esse manejo inicial, a pesquisadora conseguiu reduzir em 13% a incidência de diarreia em sua UTI.

Uma das mais comentadas causas de diarreia é a infecção por Clostridium difficile. Estima-se que cerca de 11% a 13% dos pacientes com diarreia na UTI tenham como causa a infecção por essa bactéria. O espectro de apresentação dessa doença varia de formas assintomáticas (carregadores assintomáticos) até formas graves e potencialmente fatais, que cursam com megacólon e sepse de foco abdominal

A principal etiologia é o uso indiscrimidado e prolongado de antimicrobianos, que podem fazer uma pressão seletiva sobre a microbiota intestinal e facilitar o estabelecimento e a proliferação da bactéria. Antimicrobianos mais comumente implicados são: quinolonas, cefalosporinas e clindamicina.

As próprias sociedades que estabelecem as definições de gravidade têm divergências entre si. Veja a tabela abaixo:

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Dessa forma, definir a prevalência de uma forma sobre outra torna-se tarefa difícil. Por exemplo, Kahnafer e colaboradores encontraram taxas que variavam de 11.6 a 59.2% para a forma grave de infecção por Clostridium difficile, apenas aplicando diferentes definições para o mesmo grupo de pacientes.

Uma alternativa é o uso do escore de gravidade desenvolvido pela UPMC (University of Pittsburgh Medical Center). Um escore total de 1 a 3 denota doença leve a moderada. De 4 a 6, doença grave. Acima de 7, doença complicada. E um escore acima de 15 sugere elevada probabildiade de falha do tratamento clínico e necessidade de cirugia.

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A suspeita clínica é determinada por um exame físico compatível (diarreia, sepse abdominal com febre e leucocitose, íleo paralítico ou megacólon tóxico), na ausência de outra causa mais provável, em pacientes com fatores de risco (antibioticoterapia prévia, idade > 65 anos, internação hospitalar nos últimos 3 meses e história de infecção com Clostridium difficile previamente).

O método de referência para se estabelecer o diagnóstico é a cultura de fezes. Outros métodos de menor acurácia são a identificação da bactéria por meio de PCR (reação em cadeia da polimerase), identificação de toxina B por método ELISA e identificação do antígeno bacteriano glutamato desidrogenase em amostras de fezes.

Não há evidencias para se recomendar a testagem rotineira de pacientes assintomáticos. Essa prática pode levar ao diagnóstico exagerado de infecção por Clostridium difficile, sem haver um significado clínico. Na verdade até 12% dos pacientes assintomáticos podem apresentar testes positivos de PCR. Em outras palavras, mais importante que a presença da bactéria, em pacientes colonizados, é a quantidade de toxinas produzidas por elas, em pacientes com a forma sintomática da doença.

Achados endoscópicos, sendo o mais clássico a presença de pseudomembranas, podem ser úteis para corroborar o diagnóstico. No entanto, o benefício de um diagnóstico precoce deve ser pesado contra o risco de perfuração intestinal, uma complicação mais recorrente em pacientes com processo inflamatório exacerbado. Cumpre-se dizer ainda que a ausência de pseudomembranas não descarta o diagnóstico. Uma boa prática é limitar a colonoscopia para pacientes que necessitam de biópsia intestinal a fim de se excluir diagnósticos alternativos.

O tratamento é baseado, primeiramente, na interrupção da terapia antimicrobiana feita com o agente potencialmente causador.

Além disso, a prescrição de vancomicina (125mg VO 6/6h) é preferível em relação ao uso de metronidazol para o tratamento inicial dda infecção por Clostridium difficile. 

Quando o acesso a esses antibióticos ou à suas formulações via oral são limitadas, sugere-se o uso de metronidazol (500mg VO 8/8h) para casos não graves.

Não há consenso sobre a administração enteral da formulação venosa da vancomicina, nem de sua eficiência para o tratamento da infecção por CD. Não obstante, de acordo com o conselho federal de farmácia, a vancomicina intravenosa pode ser administrada por via oral, através da diluição da formulação para administração intravenosa em 200 ml de água potável ou através de sonda nasogástrica (Klasco, 2012).

Para casos graves ou complicados com íleo paralítico ou com megacólon, a via oral pode não ser aplicável. Desse modo, uma alternativa é a administração tópica de vancomicina por meio de enemas ou até mesmo por meio de um cateter posicionado por via endoscópica (500 a 1000mg vancomicina de 6/6horas). Associado ao regime enteral, preconiza-se a administração de metronidazol 500mg EV 8/8 horas.

Caso haja necessidade de tratamento cirúrgico, a intervenção de escolha é a colectomia subtotal com preservação do reto.

Pacientes com um episodio de recorrência de colite pseudomembranosa devem ser tratados com um regime convencional. Para pacientes com o segundo episódio de recorrência, recomenda-se o tratamento feito com vancomicina seguido pela administração de rifaximina ou de fidaxomicina. Não há evidencias para se extender o ciclo de antibiótico por além de 10 dias.

O transplante de microbiota fecal deve ser considerado para pacientes com múltiplas recorrências e que falharam ao tratamento convencional.

Recomenda-se, que os pacientes com infecção por C. difficile sejam manejados em regime de prevenção de contato, e, sempre que possível, alocados em quartos privativos. O uso de luvas e aventais é obrigatório. O isolamento de contato deve ser mantido por até 48 horas após a resolução sintomática.

A higiene das mãos antes e depois do contato com o paciente com água e sabão é preferível ao uso de álcool apenas, considerando a maior eficiência do primeiro método para a retirada mecânica dos esporos bacterianos.

Não recomenda-se a suspensão rotineira de inibidores da bomba de prótons para controle de infecção por C. difficile, mas o uso desnecessário dessa classe de medicação deve ser combatido.

O uso de probióticos é controverso e há carência de artigos científicos robustos, que possam respaldar seu uso rotineiro. Em uma revisão sistemática de 2012, Hempel e colaboradores, chegaram a conclusões encorajadoras sobre o uso de probióticos para a prevenção e tratamento de diarreia induzida por antibióticos. O risco relativo acumulado de 63 artigos, evidenciou uma significativa redução na incidência desse tipo de diarreia, com o uso de probióticos, com significância estatística (RR 0.58, IC 0.5 a 0.68, P < 0.001).

Por fim, o uso de medicações constipantes, como carbonato de cálcio, rececadotrila e loperamida é desencorajado. Além do risco de obstrução da sonda enteral pelos dois primeiros agentes, essas medicações atuam sindromicamente, mascarando a etiologia do quadro diarreico. Em outras palavras, podemos retardar o dignostico preciso e o tratamento precoce. Perdemos oportunidade terapêutica,  além de expormos o paciente aos efeitos colaterais dessas medicações sem um benefício claro.

Referências:

  • Diarrhea and patient outcomes in the intensive care unit, systematic review and metanalysis, Shunsuke Taito et al, Journal of Critical Care, 53 (2019), 142 – 148.
  • Clinical Practice Guidelines for Clostridium difficile Infection in Adults and Children: 2017 Update by the Infectious Diseases Society of America (IDSA) and Society for Healthcare Epidemiology of America (SHEA)
  • Sleeping With the enemy: Clostridium difficile infection in the intensive care unit, Florian Pretcher, Katrin Katzer, Michael Bauer, Andreas Stallmach, Critical care, 2017 21:260
  • Manageing diarrhea in the intesive care, Suzie Ferret, Vivienne East, Australina Critical Care, (2007), 20, 7 – 13.
  • Diarrhea, Lawrence Schiller, Advances in Gastroenterology, Volume 84, Number, September 2000.
  • Hempel S, Newberry SJ, Maher AR, Wang Z, Miles JN, Shanman R, et al. Probiotics for the prevention and treatment of antibiotic-associated diarrhea: a systematic review and meta-analysis. JAMA. 2012;307:1959–69. 
  • Diarrhea in the intensive care patient, Andrew F. Ringel, Gerardus L. Jameson, Emily foster, Gastrointestinal emergencies, Volume 11, number 2, 1995
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