A infecção causada pelo novo coronavírus, na maioria das vezes, leva a uma doença leve. No entanto, alguns pacientes desenvolvem uma forma mais grave, marcada pelo comprometimento sistêmico, com destaque para um quadro de disfunção respiratória e de hipoxemia.
O vírus pode até ser o mesmo, mas quem inflama é o hospedeiro. E a resposta inflamatória de cada pessoa pode justificar um espectro tão diverso de apresentações clínicas. Alguns pacientes com marcadores inflamatórios elevados (proteína C reativa, ferritina, interleucinas 1 e 6) podem desenvolver a forma grave da COVID19. Esse é o racional para a busca de terapias que possam intervir com a resposta imune. Talvez uma inflamação menos intensa e mais regulada possa resultar em uma manifestação menos grave da doença.
O estudo RECOVERY tem o objetivo de avaliar o uso de dexametasona na dose de 6mg/dia (via oral ou venosa), durante 10 dias, para o tratamento da COVID19. Trata-se de um ensaio clinico desenvolvido em 176 hospitais do NHS (National Health Institute), no Reino Unido. Foram selecionados pacientes com diagnóstico suspeito ou confirmado de COVID19, e em regime de internação hospitalar. Não havia restrição de idade para a inclusão no estudo e até mesmo mulheres em idade fértil e lactantes podiam participar.
Foram alocados cerca de 2000 pacientes para receberem dexametasona e cerca de 4300 pacientes para receberem cuidados de saúde usuais, sem o corticoide. A média de idade dos pacientes participantes era de 66 anos, sendo a maioria do sexo masculino. A maior parte dos pacientes (82%) tinham confirmação laboratorial da infecção pelo novo coronavirus, sendo o restante, de casos suspeitos. Além disso, 60% necessitavam de suporte de oxigênio (cateter nasal, máscara facial, etc) e 16% estavam em suporte com ventilação mecânica.
O desfecho primário foi a mortalidade em 28 dias. De todos os pacientes que receberam dexametasona, 21.6% falecerem. E do grupo que não recebeu a medicação, a mortalidade foi de 24.6%. Pode parecer uma diferença insignificante, mas frente à análise estatística, foi, sim, significante, com um p<0.01.
Não obstante esse dado, a maior surpresa do estudo reside na análise de subgrupos. O uso de dexametasona reduziu a mortalidade em 35% para pacientes recebendo ventilação mecânica. Se analisarmos os pacientes com necessidade de aporte de oxigênio, o corticoide promoveu uma redução de 20% na mortalidade. No entanto, não houve diferença de mortalidade quando analisados o subgrupo de pacientes que não necessitavam de nenhum tipo de suporte de respiratório
Como se não bastasse, o uso da dexametasona ainda conseguiu reduzir a duração da internação hospitalar em um dia e aumentar a probabilidade de alta em 28 dias. Para os pacientes em uso de suporte de oxigênio, houve menor chance de evoluírem para intubação ou morte, caso estivessem em uso da medicação.
Corticoides já foram utilizados em pneumonias virais anteriormente, mas sem um benefício claro. Na verdade, estudos sobre o uso de corticoide em H1N1 e em MERS-CoV, apenas aumentaram o tempo de depuração viral. Sabemos que na Terapia Intensiva não há “bala e prata”. Ou seja, terapias que outrora se mostravam promissoras, foram graduamente desmistificadas por estudos mais consistentes, até o ponto de serem proscritas. Um exemplo clássico é o uso da alfadrotrecogina na sepse.
Talvez o grande trunfo do estudo RECOVERY seja o fato de que a baixa dose de dexametasona administrada não se correlacione com graves efeitos adversos, com um possível efeito benéfico sobre a mortalidade e sobre o tempo de internação, basta o paciente estar intubado e usando algum tipo de aporte de oxigênio.
Vamos aguardar outros estudos que possam endossar ou refutar o uso da dexametasona. Até lá, prescrevamos a medicação, baseados na melhor evidência que temos. Afinal, o que seria da Terapia intensiva sem um certo grau de ceticismo?