Delirium: vamos reestabelecer o nexo?

Desde a primeira vez em que pisei em uma unidade de terapia intensiva, me lembro de ter visto pelo menos um paciente com confusão mental e agitação psicomotora. Na mesma linha, é comum sermos abordados por familiares nos questionando sobre os motivos pelos quais seu parente está daquele modo, tão agitado e não falando “coisa-com-coisa”.

Frente a esse problema, chega a ser fácil administrar haloperidol para os pacientes que estão “saindo da casinha”. Difícil mesmo é compreender o delirium em toda a sua profundidade e reconhecer que, quase sempre, há alternativas terapêuticas mais bem embasadas e mais efetivas para seu tratamento.

Depois de tantas publicações, estou certo de que você já está com seu café em mãos, já ajustou os alarmes de sua UTI, e está pronto para estruturar seu conhecimento com o time da PacienteGraveUTI!

Nessa primeira parte, falaremos sobre a definição de Delirium e sobre seus critérios diagnósticos.

Visão geral:

Confusão mental não é sinônimo de delirium, mas faz parte de seus critérios diagnósticos. De acordo com o DSM-5 (a bíblia para diagnóstico de doenças mentais), o delirium é uma síndrome marcada por desatenção e alteração da cognição, estabelecida de modo agudo e que flutua ao longo do dia. Como “alteração da cognição”, podemos citar: déficit de memória, desorientação, alterações da linguagem e da capacidade visual-espacial. Além disso, deve haver evidência semiológica ou laboratorial que esses sinais e sintomas sejam decorrentes de alguma condição patológica, uso ou descontinuação de medicamentos ou mesmo de drogas.

Outros elementos que podem acompanhar o delirium são agitação psicomotora, aumento da atividade simpática, alterações do sono e labilidade emocional. Importante notar que nem todo paciente com delirium apresenta-se agitado. Tradicionalmente, classificamos a síndrome em delirium hiperativo (com agitação psicomotora) e hipoativo (sem agitação). O hipoativo é mais raro e corresponde a menos de 2% dos casos de delirium em UTI.

Onde houver doentes, haverá delirium. Caso apliquemos um formulário padronizado para diagnosticá-lo, teríamos as seguintes incidências: UTI 70%, enfermaria 16%, emergência 10%. Em casas de cuidado denominadas “hospices” a incidência chega a 42%.

Não existe uma causa única que leva ao delirium. Na verdade, temos um conjunto de causas. Do ponto de vista neurológico e anatômico, podemos citar alterações no sistema ativador reticular ascendente, como causa contribuinte para a desatenção. Além disso, alterações corticais no lobo frontal justificam a perda do pensamento judicioso, que leva ao comportamento social inadequado.

Aventa-se ainda que a acetilcolina desempenhe um papel fundamental para a patogênese do delirium. O uso de medicações anticolinérgicas pode precipitar a síndrome. Em contrapartida, a administração de inibidores da colinesterase é capaz de reverter os sintomas. Outras condições, associadas à redução da produção de acetilcolina pelo sistema nervoso central, como hipoxemia, hipoglicemia, deficiência de tiamina e a própria doença de Alzheimer são sabidamente fatores de risco para delirium.

Hipóteses alternativas incluem hiperatividade dopaminérgica e efeitos neuro-tóxicos diretos causados por citocinas inflamatórias.

Abaixo, listamos os principais fatores de risco e fatores predisponentes para delirium e que todo intensivista deve ter em mente.

Fatores de risco:

  • Demência
  • AVC
  • Doença de Parkinson

Fatores precipitantes:

  • Polifarmácia (uso de drogas psicoativas)
  • Infecção
  • Desidratação
  • Imobilidade
  • Desnutrição
  • Uso de sonda vesical de demora

Quando falamos especificamente de UTI, a agitação psicomotora pode deflagrar eventos adversos de remoção de dispositivos invasivos, como tubo orotraqueal e cateteres venosos centrais. Isso pode ser catastrófico a depender do cenário no qual o paciente se encontra. O risco de eventos adversos pode fazer com que os profissionais que trabalham em UTI se sintam desencorajados a retirar os sedativos e proceder ao despertar diário. No entanto, existem poucas indicações formais para manter os pacientes em RASS=-5 e a retirada dos sedativos se configura como uma boa prática assistencial, sobretudo por reduzir o uso e benzodiazepínicos, tempo de ventilação mecânica, tempo de internação em UTI, além de reduzir a mortalidade. 

O delirium associa-se ao aumento da mortalidade, com um incremento de cerca de 10% no risco relativo de óbito para cada dia em que o paciente mantem-se sintomático, além da redução da capacidade cognitiva em longo prazo.

Diagnóstico

Um dos primeiros sinais de que o paciente está iniciando um quadro de delirium é a desatenção. Desse modo, a afirmação provinda de um familiar de que o paciente está “diferente do normal” deve ser levada a sério, mesmo que o paciente ainda não apresente todos os critérios para o diagnóstico da síndrome.

A alteração da cognição pode se manifestar como amnésia, desorientação, dificuldade em estabelecer um discurso coerente. Distúrbios de percepção da realidade também são comuns. O paciente pode confundir o médico com outra pessoa, ou acreditar que objetos e sombras presentes no quarto são pessoas. Alucinações visuais, auditivas ou somatossensoriais também são citadas.

Temporalmente, um quadro de delirium se estabelece em algumas horas ou poucos dias, no entanto, pode perdurar por vários dias ou semanas, chegando em alguns casos a durar meses. O curso agudo é a principal ferramenta para a distinção entre delirium e demência, cuja instalação é tipicamente insidiosa. O curso dos sintomas é errático e eles tendem a se tornar mais proeminentes no período crepuscular e noturno.

Alguns achados como agitação psicomotora, inversão sono-vigília, irritabilidade, ansiedade, labilidade emocional e hipersensibilidade à luz e aos sons não fazem parte dos critérios diagnósticos, mas devem ser levados em consideração para iniciarmos o tratamento.

O delirium é subdiagnosticado, uma vez que sinais comportamentais e cognitivos são erroneamente atribuídos à idade, demência ou a outros distúrbios psicológicos. A escala CAM-ICU (Confusion Assessment Method) foi desenvolvida e validada para a identificação de delirium na UTI. Trata-se um instrumento padronizado para a triagem de pacientes. A avaliação dura cerca de cinco minutos e é particularmente eficiente quando é incorporada à rotina de cuidados com o paciente a beira leito. Siga o fluxograma abaixo para aplica-la:

Referências

N Engl J Med 2014; 370:444-454 DOI: 10.1056/NEJMra1208705

N Engl J Med 2017; 377:1456-1466DOI: 10.1056/NEJMcp1605501

Usamos cookies em nosso site para fornecer a experiência mais relevante, lembrando suas preferências e visitas repetidas. Ao clicar em “Aceitar todos”, você concorda com a nossa "Política de Privacidade".