Choque circulatório: a essência da macrohemodinâmica – Parte I

Quando falamos sobre choque circulatório, dois conceitos devem vir à nossa mente. O primeiro é a quantidade de oxigênio que conseguimos ofertar a nossos tecidos. A esse conceito, damos o nome de DO2. A letra “D” vem do inglês e significa delivery. Ou seja, a quantidade de oxigênio que conseguimos entregar aos tecidos.

O outro conceito é a quantidade de oxigênio que nossas células e tecidos necessitam para manter suas atividades metabólicas, tanto especializadas ,quanto basais. A esse conceito damos o nome de VO2.

Sempre que houver um desbalanço entre a DO2 e o VO2, de modo que quantidade de oxigênio ofertada para os tecidos é menor que sua demanda, teremos o que chamamos de choque circulatório.

Em outras palavras, choque circulatório é um estado de insuficiência circulatória aguda, que leva à hipoperfusão tecidual generalizada e, portanto à disfunção orgânica, caso não seja precocemente corrigido.

As primeiras funções a serem comprometidas são aquelas para as quais as células se especializaram. Geralmente tais funções são as que mais consomem energia. Caso o comprometimento circulatório se mantenha, funções ainda mais básicas, como a própria respiração aeróbica, se tornam prejudicadas e as células precisam buscar mecanismos alternativos para obtenção de energia, como, por exemplo, a respiração anaeróbica (ou fermentação). Como consequência, o paciente poderá apresentar elevação da lactatemia e um estado de acidose, por vezes ameaçador à vida.

O exame físico de um paciente em choque circulatório pode ser muito diverso a depender de sua etiologia. Não obstante, alguns achados são recorrentes: alteração do nível de consciência, oligúria e mosqueamento cutâneo.

O mosqueamento (ou moteamento; ou, do inglês, mottling) é um livedo reticular que se inicia na região central do joelho e apresenta correlação direta com a lactatemia. O mosqueamento cutâneo tem progressão centrífuga, sendo graduado em 5 níveis:

  • Grau 1: acometimento da porção central o joelho
  • Grau 2: acometimento de todo o joelho
  • Grau 3: acometimento até o terço distal da coxa
  • Grau 4: acometimento até o terço proximal da coxa
  • Grau 5: acometimento até a raiz da coxa.

Em uma visão simplista, poderíamos compreender o sistema circulatório da seguinte maneira: uma bomba contrátil (coração), gera um gradiente pressórico, impulsionando uma certa quantidade de sangue através de vasos de grande calibre, inicialmente no leito arterial, que se ramificam em vasos de pequeno calibre e conseguem atingir os diversos tecidos. Esses vasos de pequeno calibre, convergem novamente em vasos de grande calibre, agora no leito venoso, e retornam para a bomba contrátil. Interpondo-se entre as câmaras direitas e esquerdas do coração, temos a circulação pulmonar.

Um ponto crucial para o entendimento hemodinâmico é que o sangue não sabe para onde deve fluir. Ele simplesmente obedece a um gradiente pressórico, deslocando-se o ponto de maior pressão para o de menor pressão. Além disso o fluxo sanguíneo global para os tecidos será proporcional a esse gradiente pressórico: quanto maior a diferença de pressão entre o leito arterial e o venoso, melhor será o fluxo sistêmico.

É justamente por isso que, caso haja uma queda na pressão arterial média, via de regra, teremos um fluxo sanguíneo global insatisfatório. Da mesma forma, um aumento na pressão venosa central também é capaz de produzir esse efeito, já que o gradiente pressórico se reduzirá. Desse modo, a pressão venosa central deve ser interpretada como uma pressão de contra-retorno do volume sanguíneo para as câmaras direitas do coração.

Didaticamente, podemos dividir o choque circulatório em quatro tipos, tendo como base, cada um dos componentes do sistema hemodinâmico.

  • Hipovolêmico: Há algo de errado com o volume.
  • Cardiogênico: Há algo de errado com a bomba contrátil
  • Obstrutivo: Há algo de errado com os vasos de grande calibre
  • Distributivo: Há algo de errado com vasos de pequeno calibre

Hipovolêmico

Como principais representantes do choque hipovolêmico temos o sangramento e a desidratação. Em ambos, a gênese do choque encontra-se na redução do volume sanguíneo circulante (pré-carga) e na redução do enchimento cardíaco. Em última análise, ocorre redução do volume sistólico, do débito cardíaco e da oferta de oxigênio para os tecidos.

Cardiogênico

No choque cardiogênico, temos uma perda do desempenho cardíaco, que pode ser por disfunção miocárdica, arritmias cardíacas, e disfunção valvar.

O caso mais clássico de choque cardiogênico ocorre no infarto agudo do miocárdio (IAM). Em situações de isquemia importante, pode haver necrose significativa do tecido cardíaco e perda da capacidade de bombeamento sanguíneo.

Outro tipo de disfunção cardíaca, mas que acontece de modo crônico e não hiperagudo, é o que notamos para pacientes com insuficiência cardíaca (IC). É relativamente comum encontrarmos um paciente em contexto de IC com fração de ejeção reduzida, com aumento de níveis pressóricos e que está em edema agudo de pulmão. Para haver um fluxo sanguíneo satisfatório, é necessário um equilíbrio entre a capacidade contrátil do coração e a resistência imposta pelos vasos sanguíneos (pós carga). Em outras palavras, um coração insuficiente não é capaz de bombear sangue contra uma pós-carga elevada. Nesse cenário o paciente pode se apresentar com rebaixamento de nível de consciência, redução de débito urinário, dispneia, pele fria e pegajosa e hiperlactatemia. Esse paciente está francamente chocado! Não obstante, seus níveis pressóricos podem estar normais ou até mesmo elevados! Portanto, nem todo choque circulatório cursa com hipotensão arterial.

Ainda dentro do cenário cardiogênico, tanto das taquiarritmias quanto as bradiarritmias tem o potencial de causarem choque circulatório. O pano de fundo é o mesmo: redução do débito cardíaco. Lembrem-se que o débito cardíaco nada mais é que do que produto do volume sistólico (em mL) pela frequência cardíaca (em batimentos por minuto).

No caso das taquiarritmias, a frequência cardíaca pode estar tão elevada que o tempo entre um batimento e outro torna-se por demais reduzido, não permitindo um enchimento diastólico adequado. Nesse sentido, a despeito de uma frequência cardíaca supra-ótima, o componente do volume sistólico está comprometido. E isso leva a uma redução do débito cardíaco.

Para as bradiarritmias, o raciocínio é inverso. Agora, o coração tem tempo suficiente para se encher de sangue entre dois batimentos. A despeito do volume sistólico ser adequado, a frequência cardíaca é por demais reduzida para manter um débito cardíaco satisfatório às demandas teciduais.

Ainda dentro do cenário cardiogênico, uma das possíveis causas são as valvulopatias, sobretudo, as agudas. Como complicação mecânica do IAM, pode haver ruptura de cordoálias tendíneas e insuficiência mitral aguda. Caso isso ocorra, o volume sistólico efetivo está reduzido, já que uma fração do sangue bombeado toma um caminho retrógrado, passando do ventrículo para o átrio, não contribuindo efetivamente para a entrega de oxigênio aos tecidos. Como consequência temos, além do choque circulatório, congestão pulmonar.

Obstrutivo

Os principais representantes do choque obstrutivo são o tromboembolismo pulmonar, tamponamento cardíaco e pneumotórax hipertensivo.

O tromboembolismo pulmonar ocorre quando um trombo, geralmente formado em veias profundas dos membros inferiores, se desprende, ganha a circulação venosa, chega até as câmaras direitas do coração e se impacta em ramos da artéria pulmonar. O ventrículo direito (VD) é uma câmara complacente e que trabalha bem com sobrecarga de volume, mas não com sobrecarga de pressão. Dessa forma, um aumento súbito da resistência imposta pela circulação pulmonar, faz com que o sangue não consiga atravessar o leito pulmonar e ganhar as câmaras esquerdas do coração. Em outras palavras, ocorre um represamento do sangue no leito venoso e redução da pré-carga para o ventrículo esquerdo. Por si só, isso já justificaria uma queda do débito cardíaco e o choque circulatório.

Mas não para por aí. Devemos lembrar que, dado ao aumento de pós-carga, o VD se dilata globalmente. Essa nova configuração faz com que o septo interventricular seja deslocado para o lado de VE, no que chamamos de efeito de bernheim reverso. Agora, as câmaras esquerdas, que já recebem uma quantidade diminuída de sangue, têm que lidar com uma menor capacidade diastólica, já que a parede septal tem a mobilidade reduzida. A queda do débito cardíaco se justifica, por fim, por dois mecanismos: redução da précarga para VE e deslocamento do septo interventricular para a esquerda.

O tamponamento cardíaco ocorre quando uma determinada quantidade de líquido se interpõe de modo relativamente rápido entre o miocárdio e o pericárdio. Mais importante que o volume em si, é a velocidade de instalação do derrame. Pequenos volumes, da ordem em 100mL, já são suficientes para causarem repercussão hemodinâmica, uma vez que o pericárdio não é uma membrana distensível. Pelo menos não em curto prazo. Em um primeiro momento, o derrame se acomoda próximo às câmaras de menor pressão, se depositando próximo ao átrio direito. Com a progressão do volume, o derrame passa a se acumular ao lado de VD e, posteriormente, ao lado de VE. Isso se repercute como uma disfunção diastólica, de modo que o miocárdio perde sua complacência e não mais é capaz de se encher de sangue durante a diástole. Com menor volume sistólico, o débito cardíaco e a oferta de oxigênio também ficam comprometidos.

O último exemplo de choque obstrutivo corresponde ao pneumotórax hipertensivo. Independente da etiologia, essa entidade cursa com extravasamento de ar dos alvéolos para fora do pulmão, mas ainda dentro da caixa torácica. Isso pode ocorrer por lesão inadvertida durante a passagem de cateter venoso central, barotrauma, assincronias ventilatórias, ajuste inadequado da ventilação mecânica ou, mesmo, de modo espontâneo. À medida em que o ar se acumula na caixa torácica, ocorre um deslocamento do mediastino para o lado contra-lateral à lesão pulmonar. Juntamente com o mediastino, estruturas importantes se deslocam com ele, sobre tudo a veia cava inferior. Isso fez com que o retorno venoso para as câmaras esquerdas cardíacas fique prejudicado, reduzindo a pré-carga, o débito cardíaco e a oferta de O2 para os tecidos.

Se quisermos ir mais a fundo dentro do cenário de choques obstrutivos, podemos citar a síndrome compartimental abdominal. Nela, ocorre uma compressão extrínseca da veia cava inferior. Mais detalhes podem ser encontrados nesse post.

Distributivo:

O conceito primordial para justificar um choque distributivo é a vasoplegia inapropriada. Os principais representantes dessa categoria são: sepse, anafilaxia e choque neurogênico.

A sepse é uma resposta desregulada do organismo frente a um processo infeccioso. Através da liberação de uma série de fatores inflamatórios, que culminam com a produção aumentada de óxido nítrico, há uma vasodilatação periférica. Essa vasodilatação causa uma desproporção entre o volume sanguíneo circulante e a capacitância vascular. Em outras palavras há um estado de hipovolemia relativa. E é justamente por esse motivo que recomenda-se a expansão volêmica feita com solução cristaloide para pacientes sépticos.

No caso de choque anafilático a vasoplegia ocorre por um processo inflamatório, mas não mais infeccioso, mas sim relacionado à imunidade inata.

Para pacientes com lesão medular cervical ou torácica alta, pode haver uma perda do tônus simpático e exacerbação do tônus parassimpático. Isso é mais comum quando ocorre lesão direta do trato simpático descendente, composto por fibras de axônios presentes no núcleo intermédio-lateral, substância cinzenta lateral e raiz anterior da medula espinhal.

Conclusão

Essa classificação é apenas didática e pouco nos auxilia na condução de um caso de choque circulatório. Na verdade, o mais comum é nos depararmos com diversos espectros de choque sobrepostos em um único paciente. Uma das tarefas mais distintas de um médico intensivista é a realização de diagnósticos diferencias de modo preciso e, sobretudo, rápido, antes que as difunções orgânicas se instalem.

 

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