A família “QUER QUE SEJA FEITO TUDO”; Como discutir preferências de tratamento nestes casos?

O planejamento dos objetivos de cuidado que guiarão o tratamento sempre deve levar em consideração a fase da doença prévia, a existência de terapias modificadoras do curso natural da doença e se o paciente as toleraria (exemplo: quimioterapia para pacientes oncológicos); a fase da enfermidade aguda (exemplo: choque séptico com disfunções orgânicas múltiplas e alta chance de óbito em dias); os valores do paciente como pessoa; e a sua funcionalidade prévia, atual e a futura.

Em pacientes em fase avançada de patologias ameaçadoras à vida (exemplo: neoplasias malignas com metástases em pacientes com funcionalidade muito comprometida), com possibilidades cada vez mais escassas de terapias modificadoras de doença e com sintomas cada vez mais limitadores, possivelmente, a utilização de suporte artificial de vida, como hemodiálise, intubação orotraqueal e drogas vasoativas, prolongariam a vida de forma artificial, sem benefício estabelecido e as custas de muito sofrimento. Nesta fase, manter o cuidado focado no alívio máximo dos sintomas em suas esferas física, social/familiar, espiritual e psicológica, evitando o início ou a manutenção de tratamentos fúteis e invasivos, traria mais conforto e possibilitariam uma morte digna, sem abreviar ou retardar o processo da partida e encarando o morrer como um processo natural. Afinal, como diria Cora Coralina: “Não podemos acrescentar dias à nossa vida, mas podemos acrescentar vida aos nossos dias.”

Isso tudo parece meio óbvio, né…

“Só que não”!

Muitas vezes, quando tentamos adequar o plano de cuidados com a fase da doença em que o paciente se encontra, o que obtemos como resposta é “EU QUERO QUE SEJA FEITO TUDO”… e assim … medidas de prolongamento artificial de vida são mantidas a qualquer custo, mesmo que sem benefício e com potencial malefício, gerando sofrimento para a equipe de assistência à saúde, para o paciente e para seus familiares. Porém… o que será que este “TUDO” realmente quer dizer? Como lidar e discutir as preferências de tratamento nestes casos?

Em 2009 Timothy E. Quill e colaboradores publicaram no Annals of Internal Medicine uma Perspectiva muito interessante sobre o assunto, intitulada Discussing Treatment Preferences With Patients Who Want “Everything”. Nela os autores sugerem seis passos para guiar a conversa nestes cenários e é exatamente sobre este artigo que vamos discutir a seguir.

Passo 1: Entenda o que “FAZER TUDO” significa ao paciente.

Na maioria dos casos o “TUDO” não quer dizer todo e qualquer tratamento invasivo que prolongue a vida independe da consequência. Precisamos conhecer quem o paciente é como pessoa e acessar seus valores e prioridades. Também é importante tentar entender o que o paciente e sua família realmente estão tentando expressar, explorando os fatores emocionais, espirituais, cognitivos e familiares envolvidos (tabela abaixo). Negligenciar esta investigação pode reforçar a negação do paciente e das pessoas que o cercam sobre a possibilidade da morte, os privando da oportunidade de progredir no processo do luto e de resolver pendências. Além disso, pode levar o paciente a um sofrimento desnecessário com tratamentos invasivos e com baixa probabilidade de benefício.

tabela

Passo 2: Proponha uma “filosofia de tratamento”.

Após conhecer os valores e entender o que o “TUDO” realmente quer dizer, o profissional poderá propor uma filosofia de tratamento que esteja de acordo com o que seja importante para o paciente, respeitando a fase em que a doença se encontre e o seu prognóstico. A discussão deve levar em consideração os riscos e benefícios dos tratamentos e o que o paciente realmente vai conseguir tolerar.

Dentre as possibilidades de filosofias, podemos citar:

  • Tudo o que pode proporcionar o alívio máximo do sofrimento, mesmo que involuntariamente encurte a vida.
  • Tudo o que tenha uma chance razoável de prolongar a vida, exceto se estas medidas aumentarem o sofrimento do paciente.
  • Tudo o que tenha uma chance razoável de prolongar a vida, mesmo que possa causar um modesto aumento no sofrimento.
  • Tudo o que tenha uma chance razoável de prolongar a vida, mesmo que por pouco tempo, independentemente do seu efeito no sofrimento do paciente.
  • Tudo o que tenha o potencial para prolongar a vida, mesmo que por um tempo mínimo, independentemente do seu efeito no sofrimento do paciente.

Passo 3: Recomende um plano de tratamento

Depois de compreender a filosofia de tratamento, o médico deverá recomendar o que ele julga que deve ou não deve ser realizado, sempre respeitando a fase da doença, o prognóstico e o que faz sentido para o paciente.   Este é o momento de estabelecer os objetivos de cuidado, sendo fundamental a definição sobre suportes artificiais de vida, como ressuscitação cardiopulmonar, intubação orotraqueal e hemodiálise.

Antes de explicar o que não será mais realizado, devemos deixar claro que o paciente não será abandonado e que nós faremos TUDO que estiver ao nosso alcance para oferecer conforto e dignidade, independente do plano de cuidados estabelecido.

Passo 4: Valide as emoções.

Perceber a morte como algo próximo e possível pode gerar fortes emoções e é fundamental que a equipe busque oferecer suporte para o paciente e para as pessoas que os rodeiam, validando e legitimando os medos e angústias que possam surgir.

 

Passo 5: Negocie opiniões divergentes.

Algumas vezes o paciente pode solicitar tratamentos pouco usuais, com benefícios questionáveis ou desproporcionais para a fase da doença. Se existirem divergências sobre o plano de cuidados, idealmente deveremos rediscutir os valores, a filosofia de tratamento e a compreensão do paciente e de seus familiares sobre o prognóstico. Nos casos em que as divergências persistirem, uma opção seria propor um trial de UTI por tempo limitado. O objetivo seria manter a proposta de terapia curativa plena por alguns dias (exemplo: 72h), com reavaliação após o prazo estabelecido de forma a continuar ou interromper determinados tratamentos a depender da evolução do paciente. Em outros casos, podemos manter algumas medidas invasivas que possam ter benefício quando potencialmente reversíveis e por curto tempo (exemplo: retorno a ventilação mecânica de forma temporária em caso de rolha de secreção) e não realizar outras que não farão sentido dada a evolução do paciente (exemplo: reanimação cardiopulmonar em um paciente com encefalopatia anóxica).

Etapa 6: Utilize uma estratégia de “controle de danos” para solicitações contínuas de medidas desproporcionais e que sabidamente não trarão benefício.

Algumas vezes a morte simplesmente não é uma opção e a extensão da vida a qualquer custo vai de encontro com o que é importante para o paciente e seus familiares. Nestes casos, insistir na retirada de suportes pode ser improdutivo, soar como abusivo e levar a quebra da relação médico-paciente. Nestes casos talvez o melhor seja respeitar o tempo que a família precisa.

A equipe de saúde pode sofrer muito neste processo, principalmente porque inconscientemente pode trazer seus próprios valores sobre distanásia no fim da vida. Dentre as estratégias possíveis para reduzir os danos sofridos na equipe nestes casos, podemos compartilhar os valores e o racional da família por trás desta decisão, focar a atenção no controle máximo dos sintomas e utilizar nosso julgamento clínico para ajustar os limites terapêuticos às necessidades do paciente.

É importante lembrar que o médico é o detentor do conhecimento técnico e que manter suportes artificiais que gerem mais maleficio do que benefício, como por exemplo a elevação de drogas vasoativas para doses desproporcionais de forma fútil e a manutenção de terapia de substituição renal às custas de instabilidade importante podem não ser consideradas boas práticas médicas e podem ser contraindicados independente da filosofia de tratamento encontrada.

Em resumo devemos sempre buscar entender o que realmente é importante para o paciente e família frente a possibilidade da morte; buscar o controle máximo dos sintomas todas as esferas de sofrimento; acolher as angústias das famílias e da equipe; buscar a compreensão sobre o prognóstico e a filosofia de tratamento por trás do “TUDO”; compartilhar decisões sempre buscando a boa prática médica; e sempre reforçar a ideia do não abandono.

 

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Referência

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19721022

 

Texto escrito por Daniere Yurie Vieira Tomotani, médica intensivista pela UNIFESP, mestrado em Tecnologias e Atenção à Saúde pela UNIFESP, pós-graduação em neurointensivismo e em Cuidados Paliativos pelo Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa.

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